Eu tinha 9 anos na Copa de 70.
Aos 9 anos, naquela época, os meninos não acompanhavam os jogos com a voracidade com que consomem transmissões esportivas atualmente.
Mas eu assisti quase todos os jogos, ao lado de meus pais e irmãos, e lembro nitidamente de algumas jogadas espetaculares que, sempre que repetidas na TV ao longo dos últimos 40 anos, me transmitem a mesma sensação de quem presenciou, ao vivo, aqueles momentos de genialidade.
Mas, domingo passado, ao ler que o goleiro Félix declarou em depoimento, gravado pouco antes de morrer, que Pelé e o zagueiro reserva Fontana brigaram na concentração da Copa de 70, experimentei um certo alívio e um sentimento de libertação, devido a um episódio que ocorreu na minha escola, logo após a Copa.
Para comemorar o feito, o inédito tricampeonato que manteria a Taça Jules Rimet definitivamente no Brasil, após idas e vindas desde 58, as escolas promoviam festividades, unindo ginástica e atividade comunitária, com a presença dos pais e familiares dos alunos.
Tínhamos que ensaiar uma espécie de volta olímpica, cantando:
“90 milhões em ação,
pra frente Brasil,
do meu coração…”
A performance infantil incluía uma taça na mão de todos os alunos, que estariam vestidos com o uniforme da seleção brasileira, devidamente identificados com o nome de um dos “Heróis do Tri”.
Jamais vou esquecer meu sentimento de frustração infantil quando recebi a camisa identificada com o nome FONTANA…
Ao olhar para meu rosto desolado, a professora perguntou-me:
– O que foi, Fernando?
– Eu queria ser o Pelé – respondi simplesmente, manifestando o desejo compartilhado por todos os alunos presentes.
A professora então apresentou-me uma foto do zagueiro reserva Fontana, como argumento para justificar sua escolha e, não satisfeita, disparou:
– Você é parecido com o Fontana, não com o Pelé.
E continuou, entregando a valiosa camisa do PELÉ para outro colega e olhando para os outros meninos:
– Pelé só tem um !
O que mais me incomodou foi o fato de que o tal de Fontana era um completo desconhecido da torcida, alguém que foi escalado para a eventual e improvável substituição de um Brito (um touro de disposição) ou de um Piazza (outro difícil de machucar) e, por isso, jamais entrou em campo…
Assim como meus colegas, eu tinha a ambição de ser o melhor, mas me senti como quem foi designado a representar o ninguém, aquele de quem nunca se teve notícia e que, por isso, não parecia existir.
Somente agora em 2012, com esta revelação do Félix, meu constrangimento finalmente acabou: o Fontana podia não ser o melhor jogador da seleção, mas tinha opinião, personalidade e não se intimidou em encarar o Pelé, quando discordou dele.
A professora tinha razão: eu pareço mais com o Fontana.
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