Quem são as Ganhadeiras de Itapuã, tema da escola campeã do Carnaval Carioca?

Foto: Divulgação/Visit Salvador Bahia

“Levanta, preta, que o Sol tá na janela

Leva a gamela pro xaréu do pescador

A alforria se conquista com o ganho

E o balaio é do tamanho do suor do seu amor

Mainha, esses velhos areais

Onde nossas ancestrais acordavam às manhãs

Pra luta sentem cheiro de angelim

E a doçura do quindim

Da bica de Itapuã”

Com um samba-enredo que homenageia a força e a resistência das mulheres que marcaram a história da liberdade no Brasil, a Viradouro quebrou um jejum de 23 anos e se consagrou como a grande campeã do Carnaval do Rio de Janeiro na última quarta (25). O desfile foi uma celebração às Ganhadeiras de Itapuã, grupo cultural que remonta à época em que o bairro era uma simples vila de pescadores e que se tornou um verdadeiro símbolo da região, ao lado de ícones como Dorival Caymmi e Vinicius de Moraes.

Os mais familiarizados com o cenário artístico nacional devem se lembrar da breve, mas sólida trajetória das Ganhadeiras desde que se lançaram comercialmente no mercado e conquistaram o Prêmio da Música Brasileira de Melhor Álbum Regional, em 2015. Mas o que elas de fato representam para a cultura baiana e por que precisam ser descobertas pelos turistas?

Foto: Divulgação/Marcelo Brandt

Para explicar o fenômeno, é preciso voltar no tempo. As chamadas “ganhadeiras” eram mulheres negras – escravas ou libertas – que circulavam pelas ruas de cidades brasileiras e atravessavam freguesias oferecendo quitutes, doces, frutas, cestos e louças, entre outros produtos e serviços. Na condição de escravizadas, as ganhadeiras obtinham uma autorização dos seus senhores para comercializar os itens e eram obrigadas a lhes dar uma parcela da venda, acumulando o excedente para gastos no dia a dia ou para comprar a própria liberdade. Como libertas, as ganhadeiras lutavam pela subsistência de suas famílias e eram exímias mercadoras, compondo uma importante classe trabalhadora nos centros urbanos.

Em Itapuã, até então um vilarejo distante e isolado de Salvador, as mulheres que viviam de ganho atuavam como lavadeiras ou saíam com seus balaios a pé para vender iguarias na cidade. No trajeto, ou enquanto executavam os serviços, era comum que entoassem cantigas de roda, sambas e cirandas, que foram transmitidas ao longo dos anos até as novas gerações das famílias. Assim, o grupo Ganhadeiras de Itapuã surge como uma forma de resgate dessas narrativas musicais, trazendo para a atualidade as crônicas que descreviam o cotidiano do povo negro.

Conhecer o trabalho e as canções das Ganhadeiras de Itapuã é um mergulho na cultura do Brasil e um passo fundamental para entender as particularidades que construíram a Bahia como um produto turístico. Na teoria, haveriam apresentações regulares do grupo em Salvador, com ingressos esgotados nos moldes dos concorridos ensaios de verão do Olodum. Na prática, por outro lado, é necessário um pouco de sorte para conferir um show de perto e coincidir a agenda do grupo com o exato período da viagem.

Mas há alternativas. Além do vasto material disponível na Internet, com performances memoráveis que vão de teatros lotados a canções interpretadas à beira da Lagoa do Abaeté, é possível se aproximar e entender o universo das Ganhadeiras através dos locais e obras que guardam a sua história.

Uma dica é acompanhar a programação da Casa da Música, um dos espaços mais tradicionais de Itapuã e responsável por fomentar a produção artística da comunidade. Com quase 30 anos de atividade ininterrupta, a Casa tem a coordenação de Amadeu Alves, que não por acaso também assina a direção artística das Ganhadeiras, e apresenta saraus, exposições temáticas e apresentações que dialogam diretamente com os elementos trazidos pelo grupo.

E enquanto a viagem não chega, minha dica é buscar fontes de leitura. Uma das melhores, indicada inclusive pelos próprios autores do samba-enredo da Viradouro, é o livro ‘A Voz de Itapuã’, da pesquisadora Tânia Risério. A obra nasceu a partir de uma tese de doutorado defendida na Universidade de Aix-Marseille (França), que aborda justamente o caráter histórico e oral das Ganhadeiras, dando voz a personagens excluídos dos chamados “relatos oficiais”. Um retrato detalhado e de valor incalculável que nos recorda do papel desempenhado pelas mulheres que reproduziram esse repertório até os dias atuais. Que fique claro: antes de serem artistas, as Ganhadeiras são donas de sua própria História.

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Iuri Barreto

Iuri Barreto é formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia e Gerente de Comunicação da Grou Turismo. É baiano de alma, nascimento e profissão, e também o autor do Guia do Soteropobretano, blog com mais de 130 mil seguidores nas redes sociais.

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