As primeiras sementes de cacau chegaram na Bahia em meados do século XVIII. Trazidas diretamente da Amazônia, o fruto encontrou na Mata Atlântica um ambiente ideal para o seu desenvolvimento. Por aqui, o sistema de cultivo ganhou o nome de “cabruca”, no qual os pés de cacau são plantados dentro da mata já existente, garantindo a preservação ecológica do lugar. Com o passar do tempo, muita gente – ou melhor, pouca – fez BASTANTE fortuna com o seu cultivo, e toda uma região passou a existir em função do fruto.
Ilhéus, que até então não passava de uma vila, é elevada à categoria de cidade no final século XIX, e entra num ritmo acelerado de urbanização e crescimento econômico, marcados pelo luxo e a ostentação dos lendários coronéis do cacau. Esse apogeu, que se destacou entre as décadas de 20 e 40 do século passado, trouxe novos empreendimentos para a região e colocou a região no mapa, atraindo gente de todo o mundo para a chamada “Princesinha do Sul da Bahia”.
Tudo girava em torno do cacau. A cidade gerava tanta riqueza para a Bahia, que até a folha de pagamento dos funcionários do Estado só era fechada após a exportação das sacas. Por várias décadas, a região de Ilhéus manteve o Brasil no topo dos produtores de cacau mundiais. O Bataclan, o Bar Vesúvio, a Catedral de São Sebastião, o Teatro Municipal, o Palácio Paranaguá e os vários palacetes, casarões e fazendas da época áurea do cacau ainda estão lá, como memória viva do período – é emblemático o caso de um coronel que mandou pavimentar a própria rua com pedras polidas na Europa. Nos anos 50, o escritor Jorge Amado – também filho de um coronel – publica “Gabriela Cravo e Canela”, seu mais famoso romance. Em 1957, surge a CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), como apoio para os produtores locais. E nos anos 80, chega a vassoura de bruxa.
Diga aonde o cacau vai, que eu vou varrendo
São muitas as versões que explicam a versão do surgimento da praga da vassoura de bruxa em Ilhéus. A mais conhecida fala em bioterrorismo, como uma forma de boicote a produtores apadrinhados pela CEPLAC. Esta, por sua vez, nega veementemente, afirmando que o fungo foi trazido por acidente, quando alguns produtores tentaram se arriscar no cultivo do cacau na Amazônia – e acabaram carregando a doença para a Bahia.
A vassoura de bruxa devastou inúmeras plantações da região de Ilhéus e diminuiu drasticamente a produção local. Muitos perderam tudo o que tinham, e famílias inteiras de trabalhadores rurais se viram obrigadas a abandonar suas casas nas fazendas. O impacto da praga parecia irreversível, irremediável e incontrolável.
Para piorar, a grande indústria de chocolate, que notadamente não está preocupada com a qualidade do cacau, continuou comprando a safra contaminada – obviamente por um preço muito inferior –, impossibilitando a renovação das plantações. Não parecia haver uma luz no fim do túnel, até que alguém teve uma ideia que mudou toda a lógica do processo: se a Bahia, mesmo após a vassoura de bruxa, ainda se mantinha como maior exportadora de cacau do País, por que não produzirmos aqui mesmo o nosso chocolate?
Antes, vamos entender um pouco como funciona o negócio.
Tree to bar: o que é isso?
1 – O cacaueiro (Theobrama cacao) é uma planta da família Malvadece. Das sementes fermentadas são produzidos o líquor, o cacau em pó e a manteiga. E somente em fase posterior do processamento, obtém-se o chocolate.
2 – A colheita deve ser realizada quando os frutos estiverem maduros, e após, eles são quebrados para a extração das sementes.
3 – Segue-se a fermentação das sementes do cacau, cuja duração varia de 5 a 7 dias.
4 – A etapa posterior é a secagem, efetuada naturalmente (expostas ao sol), e o armazenamento das sacas até a comercialização.
Pronto. A partir daí, as sementes eram exportadas, e países como Suíça, Bélgica e França levavam todo o mérito pela produção do chocolate, num processo popularmente conhecido como beans to bars (“das sementes às barras”).
5 – Ao chegar à indústria, as amêndoas de cacau são classificadas pela prova de corte. As amêndoas passam por um sistema de peneiras para limpeza e aspiração de partículas finas, como pó e areia. Entram em cena a torrefação, para reduzir a umidade da amêndoa, e a a fragmentação e o descascamento, para se obter o chamado ‘nibs de cacau’.
6 – A moagem, realizada em um moinho de facas, é a etapa seguinte para se chegar ao líquor (matéria prima principal para a produção de chocolate).
7 – Por fim, o processo segue para o refino, o concheamento e a temperagem. A massa obtida com a têmpera é transferida para as formas, e estas são colocadas no túnel de resfriamento, até a cristalização do chocolate.
Assim, observando que era apenas uma questão de tempo (ok, e de dinheiro também) para que a Bahia saísse de mero produtor da matéria prima para comercializar também o cobiçado produto final. Diante do maior controle sobre todas as etapas de produção, o que era um beans to bars (‘das sementes às barras’) nos países europeus, na Bahia – e em outras regiões – recebeu o nome de tree to bar (‘da árvore à barra’).
Do cacau fino ao chocolate gourmet
A vassoura de bruxa ainda incomoda a região, mas a nível de estudos e pesquisas, muito tem sido feito para contornar a praga. Uma das estratégias para o combate é a clonagem com exemplares de pé de cacau da Amazônia, que não sofriam com a doença mesmo quando expostos ao fungo.
O Sul da Bahia entrou com o pé direito na rota do chocolate. Aliando um cacau de qualidade – que se mede por fatores como origem genética, manejo, colheita, fermentação, etc – com um crescente desenvolvimento da região – onde antes se via apenas fazendas, agora também são fábricas de chocolate – dezenas de marcas vêm surgindo para consolidar o Estado inclusive como referência de chocolate gourmet no Brasil.
Eu não fazia a menor ideia da quantidade de todos os chocolates legitimamente baianos que já existiam no mercado. As receitas podem incluir ingredientes exóticos e porcentagens de cacau altíssimas para o paladar criado a bombom Caribe, mas é tudo uma questão de hábito – afinal de contas, gosto é algo que se cria (e quase ninguém nasce querendo enfiar chocolate 100% cacau goela abaixo).
Pra que Gramado?
Ilhéus é provavelmente o único destino turístico do Brasil onde se pode conhecer, de fato, todo o processo de produção do chocolate – desde a plantação do cacau nas fazendas à embalagem das barras nas fábricas. Ironicamente, por ser uma região de clima tropical, o lugar não aparece nos guias de viagem como referência no assunto – nesse quesito, as indicações ainda insistem em associar o chocolate apenas a destinos de inverno como a Serra Gaúcha. Como se não fosse possível comer chocolate no calor.
Para se ter uma ideia das marcas de chocolate gourmet produzido na Bahia – um melhor que o outro –, veja a lista abaixo e se pergunte quantos você conhece.
A maior representação da nova era chocolatística ilheense é o Festival Internacional do Chocolate e Cacau, que entrou em sua 8ª edição em 2016 – e literalmente transforma a cidade na capital brasileira do chocolate.
Neste ano, o Centro de Convenções de Ilhéus recebeu mais de 50 expositores de chocolate, palestras, workshops, cursos e shows. Foram dezenas de milhares de visitantes e uma programação variada que começava sempre ao final da tarde – permitindo que turistas fizessem passeios pela região durante o dia e curtissem o Festival à noite.
Fora do Centro de Convenções, a cidade também entrava na onda chocolateira: na Pousada Morro dos Navegantes, por exemplo, rolou até o jantar temático ‘Trilogia do Chocolate’, com o apoio da marca Chor.
Além do City Tour e das visitas às fazendas, fomos conhecer a fábrica de chocolates da Mendoá, e tivemos um tour guiado por todas as instalações. Nem sinal de Willy Wonka, oompa loompas e cascata de chocolate – era tudo na concentração, seriedade e essa roupa de filme de ficção científica.
A forma mais fácil para quem visita a cidade fora do Festival, e quer encontrar a maioria desses chocolates, é dar uma passadinha na loja multimarcas que funciona no Bataclan, um dos principais pontos turísticos de Ilhéus.
PROGRAME-SE: a próxima edição do Festival Internacional do Chocolate ocorrerá de 20 a 23 de julho de 2017. Mais informações no site: www.festivaldochocolate.com