Passada uma semana do término do Carnaval, o Ministério do Turismo divulgou ontem os números oficiais da festa e a repercussão do evento para a economia. Muito se falou nesse ano a respeito da explosão dos blocos de rua nos carnavais das grandes cidades do País. Foi a consolidação de um modelo que tem feito sucesso nos últimos anos e apresentou números impressionantes – até São Paulo, tradicional exportadora de gente no Carnaval, viu seu número de turistas triplicar durante a folia e pulverizou o foco dos destinos mais consagrados para as mais variadas opções. Junte também a esse maior apelo dos bloquinhos uma pitada generosa de crise econômica, acrescente tarifas aéreas nada atrativas e tempere com um gênero musical – a Axé Music – que há muito tempo não emplaca nenhum hit, e pronto: está aí a receita para entender o novo cenário do Carnaval de Salvador.
Longe de mim tentar resumir em um texto de poucos parágrafos todos os motivos que concorreram para tirar o Carnaval soteropolitano do posto de mais disputado do Brasil. Só para deixar claro, eu AMO a festa daqui – e na minha opinião ela tem melhorado a cada ano –, mas há um preço a pagar pela considerável evolução na minha experiência enquanto folião: o nosso Carnaval está menos comercial, menos vendável, menos interessante para os patrocinadores e bem menos divulgado na mídia, que tem dado destaque para as festas de outras capitais. Além disso, há ainda nossa própria parcela de responsabilidade: primeiro, que a Axé Music não produz nada que se compare ao sucesso de gêneros como a música Sertaneja. Segundo, que a famosa “pegação” de Salvador já não é exclusividade do Carnaval daqui (ainda mais em tempos de Tinder e derivados). E terceiro, que o excesso de publicidade negativa sofrido pela folia soteropolitana – a festa vinha sendo acusada, com razão, de ser excludente e violenta – vai custar a sair do imaginário coletivo. O modelo da festa desenhado nos anos 90 – aquele com uma infinidade de blocos cercados de cordas e abadás caríssimos que esgotavam em poucos dias – não tem mais lugar. O jogo virou, muitas cordas sumiram, a violência diminuiu e o Carnaval está mais democrático, mas pouca gente fora de Salvador está sabendo disso.Segundo o balanço do Ministério do Turismo, houve um aumento de 9% do número de turistas em relação ao ano passado. Em toda a Bahia, contabilizando também os inúmeros destinos que funcionam como “refúgio” para o público que deseja fugir do agito, foram cerca de 2 milhões de pessoas viajando, injetando mais de R$ 1,5 bilhão na economia baiana.
Por aqui, pelo menos a gente tem a melhor garota-propaganda: até Ivete Sangalo, uma das maiores artistas do País, saiu pulando atrás dos trios (disfarçada de palhaça, ok) de Salvador, e sem abadá algum, provando que dá para se divertir numa boa gastando pouco.
Para mencionar algumas mudanças, lembra que antigamente você tinha que desembolsar uma quantia gorda para ficar perto das estrelas do Axé? Pois esse ano teve Ivete, Claudia Leitte, Saulo Fernandes, Carlinhos Brown, Banda Eva, Daniela Mercury, Cheiro de Amor, Luiz Caldas, Moraes Moreira, Psirico, Leo Santana, Alinne Rosa e mais um monte de gente arrastando trio elétrico sem qualquer sinal de cordas.
Quer mais? Além dos trios, esse ano foi montado um palco no Farol da Barra, fazendo do Largo do Farol uma atração por si só na programação do Carnaval. Em sete dias, o espaço recebeu shows de Thiaguinho, Saulo, Daniela Mercury, Preta Gil, Emicida, Leo Santana e DJ Alok, entre outros.
Aliás, eu falei SETE dias? Esqueça isso: além dos dias já tradicionais – que em Salvador vão da quinta à terça-feira –, tem ainda– a Quarta-Feira de Cinzas, com os trios do chamado “Arrastão”;
– a quarta-feira da véspera, com a abertura na Praça Municipal, e as fanfarras e blocos de sopro do Farol ao Morro do Cristo;
– a terça-feira anterior, que agora é chamada de “Pipoco” (uma referência ao folião pipoca, que pula atrás dos trios sem abadá);
– e o sábado e o domingo que antecedem o Carnaval, que lotam a Barra com o Fuzuê e o Furdunço.
Ainda há muitos pontos fracos que precisam ser trabalhados, como o esvaziamento do antigo circuito do Centro da cidade e a concentração demasiada de atrações no Barra-Ondina, mas isso é uma outra discussão. O fato é que para o folião – e essa é uma opinião geral –, o Carnaval está divertido como não se via há muitos anos, com pessoas dançando, pulando, se fantasiando e jogando glitter pro ar. Até a famigerada disputa para saber qual seria a “Música do Carnaval” não teve força esse ano: o protagonismo da festa foi mesmo da própria rua.Já para os empresários, que surfaram na onda enquanto Salvador foi o destino referência em Carnaval, foi necessário se adaptar para sobreviver: a partir dos anos 2000, tirou-se o foco nos blocos e abadás, e entraram em cena os camarotes, com o conceito de festa dentro da festa, e nos quais a vista para a rua é o que menos importa. Os camarotes acabaram ganhando espaço – literalmente, porque alguns invadiram a rua e apertaram o folião pipoca contra as cordas dos blocos – e muitos turistas elegeram como a melhor alternativa para curtir o Carnaval com mais conforto e segurança. Não é minha praia e não chega a ser a experiência genuína de “pular atrás do trio”, mas dá para fazer um pouco de cada coisa e usar o camarote como base para descanso nos intervalos.
Que o formato do Carnaval de Salvador precisava ser revisto, não havia dúvida. A festa ensaia agora um caminho sem volta, bem distante do que a consagrou comercialmente, e divide opiniões dos especialistas em relação ao futuro. As cordas irão sumir de vez? Será que o Carnaval só voltou a ser bom por que perdeu a relevância como produto? De que forma atrair empresários e patrocinadores para bancar os custos dos artistas mais consagrados? Os trios sem corda vão ser financiados com dinheiro público?Regra geral, folião não faz Turismo propriamente dito – muito menos em Salvador, quando o lugar se transforma e quase todas as atrações e opções culturais entram em recesso por vários dias. Além disso, as prioridades e preferências são outras, e diante dos gastos exorbitantes já previstos com blocos e camarotes, a palavra de ordem é economizar em relação a todo o resto: dividir apartamento, rachar a gasolina, viajar de carro e comprar comida em supermercado, para mencionar só alguns itens. Sim, movimenta bastante a economia da cidade, mas fica aquela eterna expectativa que Salvador encante e desperte a curiosidade para que o visitante retorne em uma nova oportunidade, fora do período da festa.
Com a disseminação dos trios sem corda – ou a “institucionalização da pipoca”, como alguns têm falado – é possível que essa situação melhore. Um Carnaval mais democrático e menos mercadológico, além de devolver o antigo brilho da festa, poderia baratear custos e tornar Salvador mais acessível como destino de viagem para os foliões. Com menos blocos fechados, sobra a liberdade do folião para combinar diversas atividades ao longo da semana, e inclusive dar a chance a circuitos pouco conhecidos pelos turistas, como o tradicional Carnaval do Pelourinho. Perdemos em mídia, mas ganhamos em conteúdo e autenticidade.E para quem sempre sonhou em vir, mas sequer cogitava, o Carnaval de Salvador pode virar realidade.
*Foto em destaque: autoria de Manu Dias