A Ligúria é uma dessas joias do mapa que, à primeira vista, conquista pela elegância natural da Riviera Italiana: um desfile de vilas coloridas aninhadas entre o azul do mar e o verde das colinas. Mas basta se demorar um pouco mais para perceber que, por trás da sua dolce vita, pulsa uma alma profundamente espiritual e, por vezes, surpreendentemente mística. Aqui, a fé se expressa na pedra, no tecido, na água e até nas lendas que atravessam séculos.
Em San Fruttuoso, entre Portofino e Camogli, repousa uma das imagens mais singulares do Mediterrâneo: o Cristo degli Abissi. Esta estátua de bronze, colocada a 17 metros de profundidade em 1954, foi idealizada pelo mergulhador italiano Duilio Marcante como homenagem a todos aqueles que perderam a vida no mar. De braços abertos, a figura parece acolher os que descem até ela, mergulhadores ou fiéis em busca de um momento de introspecção. A atmosfera é tão intensa que inspira cada vez mais até casamentos submarinos, nos quais os noivos, equipados com cilindros, dizem “sim” com um coro de bolhas ao redor.
O coração espiritual de Gênova pulsa na Catedral de San Lorenzo, cuja história começa no século IX, quando uma modesta igreja foi erguida sobre ruínas romanas. Entre os séculos XII e XIV, ganhou sua forma atual, um imponente edifício gótico com fachada românica em mármore branco e negro; as cores que se tornariam um símbolo da cidade. Essa fachada, com colunas esculpidas e leões guardiões, é mais que um ornamento: é uma afirmação do poder e da riqueza de Gênova durante a Idade Média.
Mas o que realmente fascina é a coleção de relíquias e tesouros guardados no interior. Entre eles, um prato que, segundo a tradição, teria servido na Última Ceia, e fragmentos de ossos atribuídos a São João Batista, padroeiro da cidade. E, em meio a relicários e pinturas, está uma joia rara e inesperada: a Paixão de Cristo pintada sobre tecido denim. Sim, jeans! Produzido em Gênova desde o século XV, esse tecido azul, chamado bleu de Gênes, era exportado para toda a Europa e, séculos depois, daria origem à palavra “jeans”. Usá-lo como base para arte sacra era ousado, mas o resultado é extraordinário: o azul profundo realça as cenas dramáticas, criando um diálogo entre o sagrado e a vida cotidiana dos marinheiros e mercadores que vestiam o mesmo material.
Terra de bruxas? No século XVI, este vilarejo aninhado nas montanhas foi palco de um dos processos de bruxaria mais famosos da Itália. Acusadas de provocar fomes, tempestades e doenças, dezenas de mulheres foram interrogadas, presas e, em alguns casos, executadas.
O Museo Etnografico e della Stregoneria preserva essa memória em uma narrativa que vai além da caça às bruxas. Dividido em alas, o museu mostra a vida rural da Ligúria de montanha (utensílios, trajes e ferramentas agrícolas) antes de mergulhar no universo do misticismo. Há reproduções de celas, cópias dos registros inquisitoriais, receitas de poções e objetos usados em rituais de cura com ervas. Finalmente, o visitante descobre que muitas das “bruxas” eram, na verdade, parteiras, enfermeiras, benzedeiras, curandeiras e guardiãs de saberes populares que incomodavam homens poderosos e religiosos da época.
Caminhar por Triora, com suas ruelas de pedra e portais medievais, é quase sentir o peso dessas histórias. Não à toa, o vilarejo cultiva uma atmosfera de mistério, celebrando festivais de bruxaria e atraindo curiosos do mundo todo.
A Ligúria é, portanto, mais do que um destino para prosecco à beira-mar. É um território que convida a mergulhar — seja no azul profundo que esconde o Cristo degli Abissi, seja nos arquivos seculares da Catedral de San Lorenzo, seja nas lendas de Triora. Aqui, a Riviera Italiana não é apenas cenário: é personagem de uma história onde fé, arte, mistério e prazer convivem lado a lado.
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