Portugal é terra de gastronomia, história, arte, poesia e espiritualidade. E nem estamos falando do Santuário de Fátima, destino obrigatório de católicos de todo o mundo. Mas de um turismo voltado para místicos, esotéricos e curiosos. Entre cafés históricos, bibliotecas ocultas, palácios iniciáticos e penhascos dramáticos, o país oferece ao viajante um roteiro singular: seguir as marcas de Fernando Pessoa, poeta que também foi astrólogo sob o heterônimo Raphael Baldaya, e sua insólita cumplicidade com o mago britânico Aleister Crowley.
Dia 1 — Lisboa esotérica e literária
A porta de entrada é a Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique (Rua Coelho da Rocha, 16–18), onde o poeta viveu seus últimos quinze anos. A biblioteca preservada reúne volumes de astrologia, esoterismo e filosofia que revelam sua faceta mística. Muitos de seus leitores ficam surpresos ao descobrir que Pessoa ganhava dinheiro como astrólogo.
Do bairro, siga para o Chiado. No Café A Brasileira (Rua Garrett, 120), ao lado da famosa estátua de Pessoa esculpida por Lagoa Henriques, é tradição tirar uma fotografia com o poeta de bronze. Registros mostram que o poeta lá se encontrava com muitos nomes importantes das sociedades secretas lisboetas.
Na Praça do Comércio, o Martinho da Arcada mantém a “mesa do Pessoa”, espaço que o escritor frequentava com assiduidade. Hoje o café integra a Historic Cafés Route.
Descendo à Baixa, percorra a Rua dos Douradores, cenário do Livro do Desassossego, onde o semi-heterônimo Bernardo Soares “vive e trabalha”. Os críticos literários sabem. Para cada heterônimo, Pessoa criava um mapa astrológico com temperamentos muito próprios.
O percurso termina no Museu Maçónico Português, do Grande Oriente Lusitano (Rua do Grémio Lusitano, 25), cuja coleção de símbolos maçônicos ajuda a decifrar referências presentes tanto em Mensagem quanto em Sintra.
Curiosidade: Pessoa praticava astrologia com seriedade, escrevendo horóscopos datados e ensaios sob o pseudônimo Raphael Baldaya. Partes desses textos podem ser consultadas no Arquivo Pessoa, e estudos recentes discutem como sua poética dialogava com tradições iniciáticas
Dia 2 — Sintra iniciática: poços e silêncio
Em Sintra, o coração esotérico do país, está a Quinta da Regaleira. O Poço Iniciático, uma “torre invertida” subterrânea, conduz o visitante por um percurso em espiral que simboliza morte e renascimento espiritual, reunindo referências templárias, maçônicas e dantescas. Trata-se de um ponto importantíssimo para os esotéricos europeus.
Não longe dali, o Convento dos Capuchos, conhecido como “convento de cortiça”, oferece a experiência oposta: austeridade e recolhimento. O pórtico, marcado por caveira e ossos cruzados, recorda a morte simbólica do mundo profano e a entrada em outra dimensão. O local foi cenário de grandes obras literárias e também carrega muitas lendas.
Dia 3 — Cascais: a Boca do Inferno e o teatro de Crowley
À beira-mar, em Cascais, ergue-se a Boca do Inferno, falésia de formato dramático onde, em 1930, o mago britânico Aleister Crowley encenou o próprio desaparecimento. A farsa contou com a cumplicidade de Pessoa, que ajudou a organizar a “morte” simulada. Dias depois, Crowley reapareceu em Berlim, em uma das mais famosas jogadas de marketing e relações públicas.
Crowley (1875–1947), mestre de Paulo Coelho, Raul Seixas, Ozzy Osbourne e Beatles, foi um dos ocultistas mais célebres do século XX. Criador da filosofia Thelema (“Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”), misturava magia cerimonial, poesia e escândalo. Em Lisboa, encontrou em Pessoa um interlocutor intelectual inesperado. Documentos analisados por Marco Pasi revelam a correspondência, mapas astrais trocados e o papel ativo do poeta na encenação.
Dia 4 — Portugal templário
A jornada pode se expandir até Tomar, onde o Convento de Cristo, matriz templária e depois sede da Ordem de Cristo, revela símbolos que inspiraram o imaginário sebastianista e a utopia do Quinto Império, tema central em Mensagem.
Mais adiante, o Castelo de Almourol, fortim medieval numa ilhota do Tejo, encerra o percurso com um cenário mítico que ecoa as visões místicas de Portugal, em que o país voltará a ter as glórias do século XVI, quando foi a mais importante e rica nação do Ocidente.
Esse roteiro é mais do que turismo cultural. É uma experiência de iniciação para quem deseja explorar não apenas os lugares que moldaram Fernando Pessoa, mas também os símbolos que habitavam sua mente. Entre cafés históricos, poços iniciáticos e falésias de lenda, o viajante percorre um Portugal invisível — onde poesia, astrologia e magia se encontram.
Published by