Benin, o berço do candomblé e ancestral do Brasil
Se muçulmanos devem ir a Meca ao menos uma vez na vida, se católicos devem conhecer Roma e Jerusalém e evangélicos precisam também visitar esse último destino, os adeptos das religiões de matriz africana em todo o continente americano não podem deixar de desbravar o Benin, de onde saíram milhões de negras e negros escravizados para as Américas por 4 séculos. Na verdade, qualquer pessoa que queira entender o Brasil, precisa visitar o país, na costa oeste do continente. Lá é que vamos entender a nossa relação com as almas, com as superstições, com os oráculos, com a música. Lá vamos entender o porquê de sermos quem somos. O nosso catolicismo e o pentecostalismo, inclusive, têm muita influência do Benin. Ainda que muitos africanos tenham vindo de Angola e outras nações da África, a hegemonia do Benin na construção da cultura e religiosidade brasileira é inegável.
Como professor e pesquisador, decidi visitar o antigo reino de Daomé para entender a espiritualidade brasileira. Antes de se tornar uma colônia francesa, o Benin, assim como Burkina Fasso, Togo, Níger e Nigéria faziam parte do maior império da África. O país é cenário do filme King Woman, com Viola Davis. Não foi a minha primeira viagem ao continente. Já conhecia o sul da África e o Norte. Desta vez, decidi visitar esse destino que vai investir fortemente no mercado brasileiro, sobretudo no turismo de memória. Antes, resolvi passar em Adis Abeba. Primeiramente porque a Ethiopian Airlines- a mais importante companhia aérea africana, cujo serviço não deve nada para as europeias e americanas- tem as melhores tarifas e também porque queria conhecer a Etiópia, berço do cristianismo na África, mencionada algumas vezes na Bíblia e com suas igrejas escavadas em rochas.
O aeroporto internacional do Benin fica em Cotonou, a mais importante cidade do país. Lá há duas possibilidades de hospedagem: o fabuloso Sofitel, um palácio cinco estrelas recém-inaugurado, e um dos mais lindos do planeta e que tem o Mohamed, antigo gerente no Fairmont Rio de Janeiro, como diretor de operações. A outra opção é o Maison Rouge, um hotel design e boutique, quatro estrelas superior, ao lado da Embaixada do Brasil, com uma gastronomia fantástica e onde você pode tomar café na companhia de fabulosos pavões. Eu optei experimentar os dois hotéis, até porque, com exceção de Ouidah, que oferece um resort pé na areia, de padrão internacional e um serviço acolhedor e eficiente, a Casa Del Papa, não há muitas opções de luxo no país. Cotonou é capital financeira, sede da presidência do país e tem um dos maiores murais de grafiti do mundo, assinado pelo nosso Kobra. A obra de arte retrata o passado, presente e futuro da país e mostra o Benin como exemplo para o mundo do convívio pacífico de todas as religiões. De fato, a cidade, além de ter o maior shopping popular do continente, também é repleto de templos e igrejas de todas as religiões, inclusive a Igreja Universal do Reino de Deus. Lá, a expressão sincretismo é utilizada sem sua conotação negativa. Indica, ao contrário, uma saudável combinação de crenças. União sem fusão. Na cidade deve-se visitar uma das maiores estátuas do planeta, dedicada a mulher guerreira africana.
A estada ideal no Benin para brasileiros é de 7 dias. O primeiro dia para repouso, o último para compras e os demais para se visitar cada uma das cidades. Você pode escolher Cotonou ou Ouidah como base e fazer um bate-volta a cada dia.
Ouidah é a cidade onde se encontra a rota da escravidão. Trata-se de uma jornada importantíssima não apenas para afrodescendentes mas para qualquer pessoa que queira entender sobre a construção da identidade nos EUA, América Central e Brasil. A rota tem 6 escalad e culmina na Porta do Não Retorno, na praia, voltada para o Atlântico de onde milhões de mulheres, homens e crianças partiam para as Américas sem chance alguma de retorno. Esse monumento, cheio de símbolos espirituais, foi tema de um documentário com Gilberto Gil e também de um programa com Luciano Huck. Em Ouidah pode-se visitar um grande templo dedicado às cobras pítons, consideradas sagradas no Benin. Em todos os cantos se vê templos vodouns, equivalente aos nossos terreiros. Esse templo maior foi visitado por João Paulo II e Bento XVI. Ao lado se encontra a maior catedral da África do Oeste, dedicada a Nossa Senhora.
Ketou é uma cidade que deveria ser irmã gêmea de Salvador. Lá pude visitar o Rei (para quem tive de cumprir todos os salamaleques e usar o vocativo majestade), soberano de todos os iorubás. No Brasil, parte importante dos terreiros de candomblé são chamados de queto, justamente por conta da ligação histórica com essa cidade. Lá se visita muitos palácios e se entende como se dá a religião dos orixás na África, totalmente diferente do que existe no Brasil. O culto de orixás no Brasil e o chamado Vodun do Haiti têm muito pouco de comum com as práticas africanas.
Vodoun no Benin não tem nada a ver com feitiçaria, muito menos com os bonecos que o Pica-Pau espetava cantando “ vodu é pra jacu”. Tais práticas são vistas no Haiti e no sul dos Estados Unidos. Para os africanos, os vodouns, assim como os orixás, não foram pessoas, tampouco divindades. São forças da Natureza que dão nomes a rios, por exemplo. Daí que muçulmanos, católicos e mesmo evangélicos no país também cultuam a essas forças da Natureza e seus antepassados.
Aliás o que não falta é culto aos antepassados no Benin. Justamente em Ketou pude ver um ritual com Geledés: danças com espíritos ancestrais. Lá também é possível assistir cultos com os famosos zangbettos, entidades que dançam com muitas palhas da costa sobre elas. Dizem que não há ninguém debaixo das palhas. Tentei desvendar o mistério. Não consegui. No YouTube é possível observar tais manifestações. É importante não confundir zangbetto com o orixá Obaluaê.
Abomey foi a capital do Reino e é outra cidade muito importante para se visitar. É chamada a cidade dos palácios reais porque cada rei construía um edifício para chamar de seu. Lá é possível visitar um mercado de artesanato que existe há muitos séculos. Cada expositor lá presente recebeu a concessão do rei para ganhar dinheiro em uma determinada atividade: da confecção de roupas e panôs, até joias e esculturas. Conheci uma das duas únicas famílias que produzem atabaques há muitas gerações. Sim, como mencionei, certas atividades só podem ser exercidas com permissão real. Lá pude visitar ainda o templo construído em forma de Camaleão, animal sagrado a quem os nativos atribuem o desenvolvimento do mundo, e um mercado a céu aberto inteiramenre dedicado a venda de ervas e apetrechos para rituais africanos . Pense naquelas lojas que vendem artigos religiosos. Imagine uma feira livre cheia de barracas iguais a essas lojas. É sobre isso.
Porto Novo é também uma cidade importante quando se fala em religião. É a maior cidade muçulmana do Benin, por estar ao lado da Nigéria. Muitas mesquitas ao lado de templos dos vodouns. O mais curioso para se visitar é a mesquita construída como uma igreja barroca de Salvador.
Alguns africanos que conseguiram a alforria voltaram para o Benin e lá construíram fortuna. Levaram a estética do Brasil colonial para o país. Além dos nomes e sobrenomes – muitos beninenses ricos se chamam Souza, Silva, Almeida- o Brasil influenciou também a gastronomia, a arquitetura e a moda.
A catedral da Imaculada Conceição também merece visita. Uma vez em Porto Novo, é essencial conhecer o Rio Negro. Uma das experiências mais incríveis que vivi . Trata-se de um rio sagrado. Ao atravessá-lo, chega-se a uma aldeia recôndita e se conhece as tradições preservadas do país.
Para encerrar a viagem, é preciso visitar Ganvié, uma cidade lacustre de 30 mil pessoas. Toda a cidade foi construída sobre um lago, por pessoas que fugiram do tráfico negreiro. Lá o deslocamento se dá por pequenas embarcações e todas as residências e comércios são palafitas.
É uma viagem autêntica. Culturalmente e espiritualmente rica. Não é uma África pasteurizada, clichê. É um pedaço do continente com belas paisagens e experiências únicas para os verdadeiros wanderlust.