O mapa da confeitaria portuguesa (parte II)

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Como escrevi no post passado, a confeitaria conventual é um dos grandes símbolos da cultura portuguesa. Em qualquer tasca, bar ou restaurante que você for, independente da região em que esteja, certamente terá lá alguma receita envolvendo não muito mais do que açúcar e gemas de ovos.

A variação de doces portugueses é imensa e, como a ideia era produzir um mapa dessas criações, ficaria um tanto quanto difícil visualizá-las no enxuto território de Portugal. Ao todo, escolhi 12 receitas que têm ligação a um local específico, espalhados de Norte ao Sul do país.

Na Parte I do post, falei sobre os seis primeiros doces desta lista: Tigelada (da cidade de Abrantes), Pastel de Natal (Lisboa), Ovos Moles (Aveiro), Clarinha de Fão (Esposende), Pastel de Feijão (Torres Vedras) e Brisa do Lis (Leiria). Nesta Parte II, completo com a descrição de outras seis iguarias, tão gostosas ou mais do que as já citadas anteriormente.

Também não custa nada explicar novamente um pouquinho da confeitaria conventual portuguesa. “Conventual” porque, oras, muitos dos doces nasceram nas centenas de conventos e mosteiros da catolicíssima Portugal. E gema de ovos como base das receitas por conta do uso das claras como engomador dos hábitos religiosos. Para não desperdiçar as gemas que sobravam, a cozinha foi o destino.

Pão de Ló (Alfeizerão)

Pão de Ló é coisa séria em Portugal, mesmo. Existe até a Confraria Gastronómica do Pão de Ló Tradicional. São diversas as variações do bolo e uma das mais famosas é a de Alfeizerão, cidade situada em Alcobaça. A receita, como rege a Confraria, se resume a farinha, açúcar e ovos. No de Alfeizerão, a cozedura específica do bolo garante um interior espesso e cremoso.

Travesseiro de Sintra (Sintra)

Sintra foi por muito tempo destino de veraneio da corte e da aristocracia portuguesa. Não é porque tinham na cidade um lugar para dormir que foi dado ao doce o nome de Travesseiro. Obra de uma tradicional confeitaria local, a Piriquita, é o formato de almofada que batiza o bolinho. Segredos da receita são mantidos na família até hoje – é sabido, pelo menos, que ela envolve massa de pastel, doce de ovos e um “toque amendoado”.

Queijada de Évora (Évora)

Apesar do nome dar crédito a Évora, a mais tradicional das Queijadas é na verdade um símbolo da região do Alentejo como um todo – da qual Évora se destaca como maior cidade. Foi lá que ganhou fama nacional a Queijada, pequena torta feita com ovos, açúcar, leite e queijo. Seguindo a tradição, para ser considerado uma verdadeira Queijada de Évora, o queijo utilizado deve ser fresco e de ovelha.

Sardinhas Doces de Trancoso (Trancoso)

Distante mais de 100 km do litoral, uma das iguarias mais famosas da pequena Trancoso é ironicamente a sardinha. Nascido no Convento de Santa Clara, o doce é uma raridade portuguesa apenas pelo fato de levar na receita, além do usual açúcar e gema de ovo, o chocolate. O recheio ainda é acompanhado de canela e amêndoa, que garantem um amargor que é, juntamente do formato de sardinha, a assinatura da obra.

Rebuçados de Ovos (Portalegre)

Achou que era bala de coco? Achou errado…Os Rebuçados de Portalegre, cidade do Alto Alentejo, são o exemplo perfeito da confeitaria conventual: açúcar e gemas, nada mais. Três dias de manuseio dos ingredientes em tacho de cobre resultam nesta bolinha dourada com miolo úmido. Os Rebuçados são finalizados com uma fina e quebradiça camada de açúcar caramelizado e, por fim, embalados em papel de seda.

Dom Rodrigo (Lagos)

O fio de ovos turbinado com canela e amêndoas não é criação de algum Dom Rodrigo da história portuguesa. Na verdade, quem desenvolveu a receita foram as freiras carmelitas de Lagos em homenagem a Don Rodrigo, fidalgo que auxiliou no socorro de vítimas do grande terremoto de Lisboa (1755). O doce ganhou a região e é tradicionalmente apresentado envolto em papel metálico de diferentes cores.

Se perdeu a primeira parte do mapa da confeitaria conventual portuguesa, clique aqui. Também vale dar uma olhada nas últimas postagens e seguir o Viajante 3.0 pelo Instagram.

O mapa da confeitaria portuguesa (parte I)

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Outro dia surgiu na minha linha do tempo no Facebook um mapa da Itália que localizava regiões por suas massas típicas e não pelas cidades (creio que era uma criação do projeto Taste Atlas). Tinha lá o pesto no lugar de Ligúria, agnolotti em Piemonte, carbonara no Lazio e por aí vai. Fiquei com vontade de fazer parecido e surgiu a ideia do mapa dos doces portugueses.

A confeitaria conventual, como é chamada, é um dos símbolos da cultura portuguesa e é traduzida na prática por uma diversidade incrível de doces, com tamanhos, formatos e, principalmente, nomes dos mais criativos. Em geral, muito açúcar e gema de ovos são os protagonistas das receitas – algumas com mais de quatro séculos de vida.

Aquela abocanhada

“Conventual” porque, oras, muitos dos doces nasceram nas centenas de conventos e mosteiros da catolicíssima Portugal. E gema de ovos como base das receitas por conta do uso das claras como engomador dos hábitos religiosos. Para não desperdiçar as gemas que sobravam, a cozinha foi o destino.

Todos os cantos de Portugal possuem seus doces tradicionais e, acreditem, a lista de variações chega às centenas. Como não seria muito prático pontuar cada uma delas no mapa, eu escolhi opções de regiões variadas. No mapa ao lado, é possível ter uma ideia de quão espalhada por Portugal é a confeitaria conventual. Abaixo eu falo um pouco sobre cada uma dessas delícias (aqui, os primeiros seis doces. Aguardem a Parte II).

Tigelada de Abrantes (Abrantes)

Açúcar, leite, farinha, ovos, raspas de limão e canela. O preparado da junção dos ingredientes batidos vai a tigelas de barro vermelhas pré-aquecidas em altas temperaturas – daí o nome Tigelada. Criada no Convento da Graça, em Abrantes, a receita do doce foi transmitida pelas freiras a uma passadeira que lá trabalhava. No boca a boca a Tigelada se popularizou e é uma das principais iguarias da região de Ribatejo.

Pastel de Nata (Lisboa)

Apesar de ser hoje uma entidade nacional, encontrada em qualquer lugar de Portugal, foi em Lisboa que o Pastel de Nata verdadeiramente nasceu. Na capital o pastel carrega sua origem no nome, o bairro de Belém. Com passado ligado ao Mosteiro dos Jerónimos, a fábrica em Lisboa produz (em receita mais do que secreta), desde 1837, o quitute de massa folhada e creme com gema de ovos e nata.

Ovos Moles de Aveiro (Aveiro)

Um nome de doce não poderia ser mais literal. Ovos, muitos, em gemas misturadas com açúcar formam o creme espesso e mole. A massa de um amarelo forte foi criada nos conventos de Aveiro e ganhou na cidade diversas aplicações – de crepe a licor. Mas a forma mais tradicional de consumir a iguaria é envolta em finas hóstias moldadas em temática marinha (conchas, peixes, búzios, etc).

Clarinha de Fão (Esposende)

A pequena vila de Fão tem pouco mais de 3 mil habitantes, localizada ao Norte de Portugal, no concelho de Esposende. Talvez passasse despercebida pela região não fosse a beleza da praia de Ofir e, principalmente, pela confecção das Clarinhas de Fão. O doce, que só é encontrado em confeitarias de Fão ou cidades vizinhas, se resume a um pastel em formato do rissol português, em massa fina e estaladiça, com recheio cremoso de chila (abóbora).

Pastel de Feijão (Torres Vedras)

Pois é, a criatividade portuguesa vai longe quando o assunto é confeitaria: este é sim um doce feito do nosso conhecido grão. No século 19, em Torres Vedras, município localizado no Distrito de Lisboa, saía das mãos de D. Joaquina Rodrigues a receita para o pastel recheado de amêndoa e feijão branco cozido. O doce foi explorado comercialmente por herdeiros e virou tradição, sendo hoje fabricado por cerca de 30 produtores locais.

Brisa do Lis (Leiria)

Os brasileiros mais desatentos dirão que se trata de um quindim. Diferentemente da nossa iguaria, que leva coco ralado, a Brisa do Lis tem, além de açúcar e ovo (obviamente), amêndoas. A história dá que a Brisa surgiu no convento de Santana. A localização da origem da receita só foi confirmada pelo nome do doce, em referência ao rio Lis, que corta a cidade de Leiria.

Fiquem ligados no blog para acompanhar a Parte II deste mapa da confeitaria conventual portuguesa. Também vale dar uma olhada nas últimas postagens e seguir o Viajante 3.0 pelo Instagram.

Lisboa na companhia de Fernando Pessoa

O panorama da Lisboa de Fernando Pessoa, uma “multicolorida massa de casas”

É razoável pensar que as dicas dadas por um morador da cidade para a qual você está viajando sejam extremamente valiosas. E se tais indicações forem passadas por um dos maiores escritores da língua portuguesa? Nada mal, certo?! É o que Fernando Pessoa fez, lá pelo meio da década de 20, em um guia turístico para Lisboa.

Acredito que a maioria que aqui me lê já tenha buscado informações externas sobre um destino, seja em um guia oficial, desses comprados em livrarias, seja na própria internet. É indiscutível que opções de rotas e prioridades do que visitar são uma mão na roda quando lhe faltam tempo e/ou conhecimento acerca de um local.

Quando escreveu o tal guia – publicado no Brasil, em edição bilíngue (português/inglês), pela Companhia das Letras sob o título de Lisboa: O que o turista deve ver -, Fernando Pessoa queria valorizar Portugal, colocando na vitrine internacional a amada pátria.

A versão da Companhia das Letras do guia de Pessoa

Sua proposta era apresentar ao mundo sua cidade, Lisboa, como o destino incrível que de fato é, equiparando-a a locais que à época já possuíam uma presença mais frequente no imaginário do viajante – em um período que o Turismo, como conhecemos, ainda não era uma realidade.

Para apresentar a capital portuguesa, o autor de Mensagem e Livro do Desassossego propôs então uma rota por regiões importantes da cidade, em itinerário a bordo de um carro fictício. Uma leitura fácil, longe dos rebuscamentos característicos de sua prosa e poesia, é a marca do guia.

Sim, há lá horários de funcionamento e valores de admissão em atrações como a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional de Arte Contemporânea, tal qual os guias turísticos convencionais. Mas Pessoa dá seu toque ao conversar com o leitor como se estivesse ao pé de seu ouvido enquanto é feita a visita pela Lisboa de 1925, ano em que provavelmente a obra foi escrita.

“Convidaremos agora o turista a vir connosco. Servir-lhe-emos de cicerone e percorreremos com ele a capital, mostrando-lhe os monumentos, os jardins, os edifícios mais notáveis, os museus – tudo o que for de algum modo digno de ser visto nesta maravilhosa Lisboa”, diz nas primeiras páginas.

O plano de Lisboa no início do século 20 (Reprodução/The Map House)

Antes, logo no primeiro parágrafo, o escritor descreve a cidade: “Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem desfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa.”

Com a obra em mãos, a jornada se torna um misto de viagem no tempo, por uma Lisboa de 90 anos atrás, e o aprendizado por um guia muito bem feito e “atual” – especialmente quando se trata de atrações abertas ao público até os dias de hoje, como a Torre de Belém ou o Castelo de São Jorge.

Ao fundo, a estátua de Marquês de Pombal, que ainda não estava pronta quando o guia foi escrito

Por outro lado, a distância temporal nos permite episódios interessantes. Pego como exemplo a importante Praça Marquês de Pombal, com a icônica estátua do nobre diplomata, que ainda estava em construção quando Pessoa escreveu o guia.

“Foi este o local escolhido para erigir o monumento ao grande estadista português […]. De acordo com o projecto, representará o grande estadista, no seu pedestal de glória contemplando a sua formidável obra”, descreve, baseando-se apenas em projeções.

Em outro momento, Fernando Pessoa faz ressalvas para problemas que tardariam quase um século para serem resolvidos. Ao tratar do Museu dos Coches (em sua localização original, no Picadeiro Real), o autor pontua que “alguns dos veículos estão guardados e só serão expostos quando for criado espaço para eles com a construção de novas galerias”. Tal espaço surgiu somente em 2015, com a inauguração do novo edifício, assinado pelo premiado arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha.

Torre de Belém e sua longa fila de turistas

Pessoa sonhava em ver seu Portugal retomando as glórias de eras passadas e acreditou que o reconhecimento internacional, por meio do Turismo, era peça-chave desse processo. Escreveu o cartão de visitas para uma Lisboa “desconhecida”, morada de 435 mil pessoas.

Mais de 90 anos depois, a capital portuguesa e suas ruelas se espremem diante de hordas de turistas de todas as partes do mundo. Maior, hoje com 3 milhões de habitantes, Lisboa entrou de vez na vitrine estrangeira, como sonhava Pessoa.

Se a realidade agradaria a imaginação do poeta, é difícil saber. Resta aos mortais que estiverem de passagem por Lisboa aproveitar o que a cidade tem a oferecer. E, se possível, na companhia atemporal das páginas escritas por Fernando Pessoa.

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