Há exatos 400 anos iniciou a trajetória dos negros nos Estados Unidos. Escravizados, os poucos sobreviventes de uma viagem transatlântica espanhola interceptada por ingleses chegaram por acaso na costa leste do país, no estado da Virgínia, em 1916. Vendidos pelos britânicos em troca de comida, ali dava-se início ao tráfico negreiro na região, ali nascia a América. Demorou quase quatro séculos, muita luta, repressão e sangue, para que a comunidade negra norte-americana pudesse ver sua história reconhecida e exibida em um museu nacional.
O National Museum of African American History and Culture (Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, ou NMAAHC), localizado no National Mall, em Washington, nasceu em 2016 durante a administração do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. Simbólica e grata coincidência, já que o projeto havia sido criado 13 anos antes pelo antecessor de Barack Obama, George W. Bush.
O NMAAHC faz, em seus três pisos de exibição permanente, recortes temporais da trajetória do negro no país. Com dados ao mesmo tempo estarrecedores e didáticos, com relatos, imagens e artefatos, o museu trata do período escravista, relembra heróis negros da guerra civil – conflito entre Norte e Sul que culminou no fim da escravidão institucionalizada – e homenageia líderes dos anos de segregação racial.
Pessoalmente me chamou atenção como reparações históricas são apresentadas pelos salões sem meias palavras, por exemplo, reconhecendo que havia escravistas em meio aos Founding Fathers – notadamente com o “Paradoxo da Liberdade” acompanhado da estátua daquele que esboçou a declaração de independência do país, Thomas Jefferson, que escreveu que “todos os homens foram criados iguais” ao mesmo tempo que ele mesmo escravizava mais de uma centena de homens e mulheres negros em suas propriedades.
É neste contexto muito exaltada a figura de Frederick Douglass, um ex-escravo que conquistou sua liberdade e se estabeleceu como uma das raras vozes negras a advogar contra a escravidão enquanto ela era realidade para cerca de 3,5 milhões de norte-americanos. “Este 4 de Julho é de vocês, não é meu”, disse a uma plateia branca durante a celebração da independência em 1852. “Vocês podem estar felizes, eu devo estar de luto. O que é para o americano escravizado o 4 de Julho de vocês? Um dia que revela a eles mais do que todos os outros dias do ano a flagrante injustiça e crueldade a que ele é constantemente vítima.”
Os anos de sobrevivência da escravidão e dos conflitos para o seu fim dão lugar, pouco a pouco, a um cuidadoso relato do cotidiano dos negros durante a era da segregação – que perdurou até 1968. Estão ali Martin Luther King e Malcolm X, certamente, mas também dezenas de outros nomes tão importantes quanto o dos líderes comumente exaltados: Ida B. Wells, James Baldwin, Rosa Parks e W.E.B. du Bois para citar alguns. O memorial a Emmett Till, jovem de 14 anos brutalmente assassinado em 1955, incorpora de forma densa a realidade sangrenta na qual essas lideranças negras atuaram.
Nos pisos superiores, o NMAAHC traz uma série de exposições que só confirmam o quão presentes estão no cotidiano as figuras negras, seja no esporte ou no entretenimento. A presença de afro-americanos nas artes e nas forças militares, por exemplo, reforça a importância da representatividade para aqueles que crescem à margem da sociedade, apesar de em sua totalidade somarem 13,5% de toda a população dos Estados Unidos.
Ao fazer um paralelo é impossível não se sentir desconfortável com a ausência de um exemplar dos mesmos moldes no Brasil, País no mundo que por mais tempo e em maior quantidade viu desembarcar em seu litoral corpos negros a serem comercializados. São notáveis os esforços de espaços como o Museu Afro Brasil, o Museu da Abolição ou o Museu Afro-Brasileiro, mas há ainda uma caminhada longa para dar ao tema a relevância (e, em linhas gerais, o investimento) que merece.
Enquanto o exemplar brasileiro não vira realidade, é obrigatória a visita ao NMAAHC para aqueles que estiverem por DC. Ouso dizer que entende-se mais da história dos EUA visitando este museu do que os memoriais e monumentos do National Mall. Facilita bastante o fato do museu ser muito bem localizado, bem ao lado do Monumento a Washington (aquele icônico obelisco) e ser gratuito por fazer parte da família Smithsonian de museus.
O National Museum of African American History and Culture está aberto diariamente, das 10h às 17h30. Na baixa temporada, entre setembro e fevereiro, é exigida a reserva prévia de ingressos apenas aos sábados e domingos – durante a semana a entrada é livre, basta passar pela segurança e pronto. Na alta, de março a agosto, a entrada livre é restrita a dias da semana e após as 13h. Nas manhãs de segunda a sexta e aos sábados e domingos a reserva prévia de bilhete é necessária.
Ps.: Uma sugestão extra que eu não posso deixar de lado é o projeto 1619. A série de podcasts produzida pelo New York Times e com apresentação de Nikole Hannah-Jones acompanha a temática do NMAAHC de forma quase que siamesa.
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