Emília Perez, tapas e golpes

Quando vi Emília Perez, como muitos, não achei o filme particularmente ruim. Mesmo não achando que o filme e sua atriz principal merecessem a quantidade de prêmios e indicações recebidas, gostei de certos aspectos e até mesmo da ousadia do autor Jacques Audiard.

As únicas coisas que realmente me desagradaram ao final do filme foi a abordagem demasiadamente leviana dos crimes cometidos pelo narcotráfico e uma transformação de gênero que muda o caráter e a índole da pessoa, como uma redenção.

Porém, o que eu descobri com a reação do povo mexicano é que, assim como Jacques Audiard, eu não entendo nada sobre o México, sobre a cultura transgênero de maneira geral e menos ainda sobre a cultura transgênero no México.

A única diferença, no entanto entre eu e Jacques, é que eu não resolvi fazer um filme sobre o assunto e ele sim.

Emilia Perez, a exclusão, a mistura de estereótipos e falta de bons ingredientes não agradaram o México.

A França e o wokismo

Em plena crise identitária e preocupada com a islamização de seu território, a França vê o wokismo com certa distância e até reticência. O escritor americano Thomas Chatterton Williams, que mora em Paris e é uma das vozes mais empolgantes nos debates atuais sobre identidade, explica essa reação para o jornal Express em 2023:

Durante a conferência, os palestrantes debateram repetidamente se o que os franceses chamaram de ‘wokismo’ é uma preocupação séria. A maioria dos palestrantes e membros da plateia, inclusive eu, respondeu mais ou menos afirmativamente. A organização política em torno da identidade, e não da ideologia, é um dos melhores indicadores de conflito civil e até guerra civil, de acordo com uma análise de conflitos violentos feita pela cientista política Barbara F. Walter. Ao colocar grupos uns contra os outros em uma luta de poder de soma zero – e classificá-los em uma escala de virtude baseada em privilégio e opressão – o wokismo pode promover diferenças de raça e etnia a ponto de aumentar o preconceito em vez de reduzi-lo, por sua vez alimentando uma reação violenta e perigosa do grupo majoritário. Pelo menos esse era o sentimento predominante do nosso grupo.”

Resumindo grosseiramente, o modelo republicano francês não valoriza privilégios individuais, mas sim o bem comum, ou seja, de todos igualitariamente. Para você ter uma ideia, não existe na França qualquer estatística referindo-se a distinções raciais, anúncios mediáticos referindo-se a origens étnicas ou pertencimento a minorias.

Em princípio, na França, e reitero, em princípio, não se divide para melhor governar. Na realidade, entre as diferentes classes, entre adeptos partidários de ideais extremos, entre maniqueistas e ainda “islamo-esquerdistas” e “islamofobistas”, a França já tinha bastantes conflitos sociais e de identidade para gerenciar antes do wokismo.

Sendo assim, seja por medo, ingenuidade ou ignorância, quando se trata de wokismo, a França coloca um pouco o pé na jaca. Tivemos um pequeno exemplo durante os J.O. E neste caso aqui, a confusão não foi pouca.

Lembrando aqui: wokismo é sinônimo de inclusão. E em Emília Perez, excluíram todos os mexicanos e suas características linguísticas. Excluíram todas as mulheres transgêneros mexicanas, todas as cantoras, todos os dançarinos…

Imagem gerada por IA , Estereótipos são versões simplificadas sobre uma pessoa ou grupo, e que não condizem com a realidade.

Para piorar, quando questionado sobre a questão das características linguísticas, Jacques Audiard declarou que pensou em fazer o filme em francês, mas optou pelo espanhol por ser uma língua de pobres. Suponho que se referia aqui ao terceiro mundo e não à Espanha.

Primeiro vieram as declarações “contra a equipe da Fernanda” de Karla Sofia Gascón, em seguida, a descoberta dos tweets onde a atriz crítica o que crê ser a islamização da Espanha, assim como a abertura do Oscar para minorias.

“Eu não sabia se estava assistindo a um festival afro-coreano ou a uma manifestação do Black Lives Matter”, escreveu em um tweet.

Quer atitude menos woke que isso?

Emília Perez e a Cancel Culture

Logo, não tardou a ser abandonada pela equipe e produtores que há pouco a vangloriavam. De porta-estandarte do filme francês, passou a ser a mais famosa vítima da “Cancel Culture” do momento. Justamente, Karla sofre agora do lado mais perverso e paradoxal do movimento que prega aceitação.

Enfim, desde o filme até o escândalo, estamos vendo situações e declarações nada inclusivas. Entre a atriz Karla Sofia, seus colegas, Jacques Audiard, produtores, a Academia e o povo mexicano, estamos assistindo tapas e golpes para todos os lados, parece não ter sobrado beijos para ninguém.

Emília Perez, o aprendizado

Como a equipe de Emília Perez, podemos e devemos aproveitar a situação para aprender, no mínimo, as seguintes lições:

– Não sabe sobre um assunto, fique quieto.

– Se alguém te acusar de algo comprovado, não tente justificar. Seja humilde e desculpe-se. Afinal, somente quem apanhou pode dizer se o golpe foi duro, e não quem o deu.

Johanne Sacreblue

Em reação a presunção de Jacques Audiard, a mexicana Camilla D. Aurora criou uma paródia, um filme supostamente francês repleto de preconceitos, falsas ideias e massacrando a língua de Molière. Os comentários no Youtube são de morrer de rir.

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Silvia Helena

Após breves passagens pela Faculdade Metodista de São Bernardo e Belas Artes de São Paulo, aos 18 anos fui estudar no Canadá, onde vivi durante 23 anos. Lá me formei em História da Arte pela Universidade de Montréal, estudei turismo no Collège Lasalle de Montréal e no Institut de Tourisme et Hôtellerie du Québec. Comecei minha carreira na área trabalhando em Cuba. Durante os anos vividos no Canadá, entre outras coisas, fui guia de circuitos pela costa leste e abri minha primeira agência de receptivo para brasileiros. Há 18 anos um vento forte bateu nas velas da minha vida me conduzindo até França. Atualmente escrevo de Paris, onde vivo e trabalho dirigindo a empresa de receptivo, LA BELLE VIE.

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