A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris foi a cara da França em vários sentidos. Uma França sem vergonha de sua literatura, sem vergonha de seu caráter revolucionário, libertário e inclusivo, sem vergonha de sua modernidade.
O evento foi também a cara da França por seus posicionamentos polêmicos e pela jogada de marketing única de quem dispõe de uma das vias navegáveis urbanas mais bonitas do mundo.
No que diz respeito a apreciação geral, senti que meus amigos de esquerda adoraram o “desfile”, no entanto, os mais conservadores ficaram chocados.
A literatura francesa e o triângulo amoroso
Algumas das polêmicas merecem ser esclarecidas, começando pelo triangulo amoroso.
Teoricamente acho que a ideia aqui era pôr em destaque a literatura francesa e não um “ménage à trois”. Na prática não foi o que aconteceu. Dai a necessidade de maiores explicações:
Na literatura francesa, os triângulos amorosos são frequentemente usados para explorar temas de desejo, paixão, lealdade e conflito.
Um exemplo clássico é “Madame Bovary” de Gustave Flaubert, onde a protagonista Emma Bovary se encontra dividida entre o dever e o desejo, levando-a a um trágico fim. Outra obra notável é “O Amante” de Marguerite Duras, que apresenta um intenso triângulo amoroso ambientado no contexto colonial do Vietnã. Essas narrativas não apenas entretêm, mas também provocam reflexões profundas sobre a natureza do amor e as implicações morais das relações humanas.
Além disso, triângulos amorosos podem ser encontrados em poesias como “As Flores do Mal” de Charles Baudelaire, onde os temas do amor proibido e da luxúria são explorados com uma linguagem rica e simbólica. Vale notar que algumas dessas histórias de triângulos amorosos influenciaram a literatura mundial, inclusive brasileira.
No quadro apresentado a inspiração veio da Obra Literária e cinematográfica Jules e Jim.
O romance “Jules e Jim” foi escrito por Henri-Pierre Roché, um autor francês que esteve envolvido com a vanguarda artística de Paris e o movimento Dada. Publicado pela primeira vez em 1953, este romance semiautobiográfico foi escrito quando Roché tinha 74 anos. Ele narra a história de sua relação com o jovem escritor Franz Hessel e Helen Grund, com quem Hessel acabou por casar.
Jules e Jim
A narrativa acompanha a amizade entre Jules, um alemão, e Jim, um francês, em Paris. A chegada de Catherine na vida dos dois amigos introduz o elemento do triângulo amoroso, que se desenvolve ao longo de vários anos, incluindo o período da Primeira Guerra Mundial. Este contexto histórico é essencial para a trama, pois não só molda as relações entre os personagens, mas também reflete as tensões sociais e culturais da época.
O livro foi posteriormente adaptado pelo diretor François Truffaut, que ajudou a popularizar a história do triângulo amoroso entre Jules, Jim e Catherine. “Jules e Jim” é considerado um marco do cinema, particularmente da Nouvelle Vague francesa, por sua abordagem inovadora da narrativa e da técnica cinematográfica. O diretor François Truffaut desafiou as convenções narrativas ao explorar a fluidez da amizade e do amor em um triângulo amoroso complexo e dinâmico.
Além disso, a cinematografia e a edição do filme foram revolucionárias para a época. O filme também é reconhecido por capturar o espírito de uma era, refletindo as mudanças sociais e culturais da França no início do século XX. Esses elementos, combinados com as atuações memoráveis, especialmente de Jeanne Moreau como Catherine, tornam “Jules e Jim” uma obra influente e atemporal que continua, assim como a obra literária de Henri-Pierre Roché, a inspirar escritores e cineastas até hoje.
No entanto, poucos conhecem essas referências literárias e cinematográficas; eu mesma pesquisei para conhecer mais sobre o assunto. A incompreensão levou muitos a ver no quadro que se inicia com três jovens na biblioteca somente o final dos protagonistas em um ménage à trois.
A Cinemateca / Jules e Jim (thecinematheque.ca)
JO2024 cerimônia: A FestA
Outra grande polêmica da cerimônia de abertura desses JO2024, o quadro da Festividade, onde muitos viram a ligação com a Santa Ceia.
De fato, na França a blasfêmia e a sátira não são proibidas por lei e fazem parte do quotidiano.
No entanto vale lembrar que as pinturas que retratam cenas bíblicas, como a Última Ceia, são muito comuns na história da arte. Estas obras não são apenas expressões de devoção religiosa, mas também cápsulas temporais que refletem os contextos culturais e históricos dos seus criadores. Artistas como Leonardo da Vinci e Rubens capturaram esses momentos com tal habilidade que seus quadros continuam a inspirar e serem referencias para o mundo.
Contudo, a Última Ceia foi interpretada de várias maneiras ao longo da história, desde o Renascimento até o Pop Art, oferecendo uma reutilização da mesma imagem através dos tempos. Cada imagem com iconografia da Santa Ceia é um universo em si, algumas vezes trazem símbolos e significados para decifrar, outras servem como pura diversão.
Iconografia Perene
Na arte, a utilização da mesma iconografia ao longo do tempo é conhecida como iconografia perene. Este conceito refere-se à recorrência de certos símbolos e imagens que mantêm seu significado ou adquirem novas interpretações em diferentes contextos históricos e culturais. A iconografia perene permite que obras de arte de diferentes épocas dialoguem entre si, criando uma continuidade visual e temática que enriquece a experiência do espectador e oferece uma perspectiva mais ampla sobre a evolução cultural e artística da humanidade.
A Ceia nada santa dos JO2024 acaba com a presença de Dionísio em azul, conhecido como Baco na mitologia romana. Dionísio é uma figura central na mitologia grega, deus do vinho, das festas, da alegria e do teatro. Afinal, o espectador fica confuso e tarda a perceber. Não, não se trata da Santa Ceia, mas sim uma festa universal e atemporal, encerrada por Dionísio que aparece cantando e lembrando que “nus somos todos iguais”.
Neste polêmico quadro, acredito que certos espectadores foram convidados à uma reflexão mais profunda sobre espiritualidade, humanidade e inclusão.
Eu fiquei um pouco surpresa, não chocada, somente surpresa, sem entender a relação com os Jogos Olímpicos, mesmo entendendo a ligação com a Grécia e a criação dos JO. No entanto, a obra se trata de uma representação subjetiva da festividade e um convite a reflexão. A cara da França! Porque não?
Polêmicas que o Brasil não viu.
Aya Nakamura
Aya Nakamura é uma renomada cantora pop franco-maliana, conhecida por sua música que mistura sons urbanos e Afrobeat. Ela ganhou fama internacional com o single “Djadja”, que se tornou um sucesso global em 2018.
Quando foi anunciada sua presença no evento, a ala conservadora da França reclamou, dizendo não se sentir representada por essa cantora. Isso foi suficiente para que os progressistas clamassem seu slogan favorito para qualquer crítica a um personagem público negro: “racistas!”
Assim, para surpreender a todos, os organizadores decidiram confrontar, sob a Ponte das Artes, o que há de mais conservador na França — a guarda nacional das forças armadas — com o que há de mais moderno e popular no mundo da francofonia. Dois minutos após a ala conservadora declarar-se satisfeita, dizendo: “Enfim, gente séria e disciplinada para nos representar”, Aya Nakamura entrou em cena, tocando seus seios e púbis enquanto cantava animadamente Djadja.
Lady Gaga
A escolha de Lady Gaga não agradou aos franceses, que não entenderam o gasto orçamentário e o desprezo pelo talento de tantas estrelas nacionais. Eu mesma posso garantir que é possível encontrar em um cabaré de Paris uma cantora capaz de fazer o que fez Lady Gaga com muito mais talento. E ao vivo! E embaixo de chuva se necessário.
Os costumes fizeram polêmica no mundo da moda entre Dior e Yves St Laurent, sobre quem teria os criado.
Eu não sei quem criou, mas garanto que no Lido de Paris os acessórios de plumas eram iguaizinhos, iguaizinhos. Será que pegaram emprestado? E no meu coração uma pontada de nostalgia brotou com a questão: porque a Accor fechou o que era então o melhor cabaré de Paris?
Paris Wide Open, Uma cerimônia aberta
A cerimônia foi extensa tanto figurativa como literalmente. Não é meu objetivo comentar cada um dos quadros apresentados, mas compartilhar com vocês informações e impressões que acredito interessantes. Quem sabe apaziguar o coração dos que pensam que os franceses são todos depravados.
Eu que conheço esses seis quilômetros por percorre-los frequentemente fiquei feliz em ver pela televisão como as águas e pontes do Rio Sena foram animadas pela arte e cultura francesa. Não acredito que quem esteve presente teve uma melhor visão do que aqueles que ficaram em suas casas. Como ver ao mesmo tempo um espetáculo que acontece em seis quilômetros de extensão?
O que eu amei
Maria Antonieta, Gojira e sua música heavy metal terminando com música lírica.
O que eu aprendi
Ubi Soft, Assassins Creed e os Minions são criações francesas.
O que me chamou a atenção
A chuva
Algumas cenas ou quadros poderiam ter sido montados com uma estrutura protetora ou certos participantes poderiam ter desfrutado de um voluntário com um guarda-chuvas. Com exceção da tribuna presidencial ninguém foi poupado, nem mesmo o mais velho atleta vivo francês em cadeira de rodas.
O Moulin Rouge
Eu não sei vocês viram, mas não vi uma perna levantar ao mesmo tempo que a outra. Teria a chuva e os paralelepípedos da beirada do Rio Sena dificultado a tarefa?
O que faltou
A França tem muitos talentos, não é possível expor tudo. Aparentemente a intensão de Thomas Jolly, o diretor artístico, era fugir da imagem baguette/vinho e ir além das ideias pré-concebidas.
Na minha humilde opinião não faltou quase nada. Porém, mais uma vez, na minha humilde opinião, eu teria agregado:
Um show de som e luzes sobre as paredes do Louvre e do Museu D’Orsay, a trupe do Paradis Latin, a companhia Royal de Luxe e suas marionetes gigantes, o Dronisos com seus shows de drones e Belle da Obra Musical Notre Dame de Paris.