Sabemos que os tempos são duros para a hotelaria como nunca imaginamos. A maior parte do mercado de portas fechadas, quartos ociosos, várias novas aberturas sendo atrasadas e ninguém sabe ao certo quando será seguro viajar novamente. Mas urge que o mercado continue proativo, como já falamos aqui. É hora da hotelaria ser, mais do que nunca, solidária.
Especialistas do setor apontam que a solidariedade é, sem dúvidas, uma das moedas mais importantes para o setor hoteleiro agora. O viajante está prestando muita atenção – mais do que nunca – nas empresas que estão sendo solidárias neste momento, tanto em relação a seus clientes e colaboradores quanto também em relação aos destinos nos quais estão inseridas. Afinal, qualquer ação da indústria de hospitalidade gera impactos na comunidade na qual está inserida.
A pesquisa da Trvl Lab do Panrotas (em parceria com a Mapie) mostra que mais de 51% dos entrevistados não pretendem voltar a consumir/comprar serviços de prestadores do turismo que não sejam solidários nestes tempos. Solidariedade e pro-ativismo nesta fase serão, mais do que nunca, essenciais – para a sobrevivência do negócio e para a sobrevivência da comunidade. “Como disse o Washington Olivetto, não é hora de vender; é hora de oferecer serviço. A participação solidária no momento será a melhor ação de relações publicas para hotéis de áreas atingidas”, diz Erik Sadao, especialista do setor com mais de 20 anos no turismo.
Em abril, vimos muitos hotéis, de pequenas propriedades independentes à gigantes do turismo de luxo, cederem seus quartos para profissionais da saúde na linha de frente contra a Covid-19 em diversos destinos. Falamos de vários destes indispensáveis bons exemplos também aqui.
Nesta hora, a hotelaria solidária deve também, mais do que nunca, cuidar também das comunidades ligadas aos hotéis durante estes tempos duros e sem precedentes. Sobretudo em regiões remotas, onde comunidades chegam a depender economicamente quase que exclusivamente do turismo. “Acreditamos que qualquer iniciativa de conservação deva estar diretamente ligada à manutenção das comunidades locais”, confirma Mohanjeet Brar, diretor da Gamewatchers Safaris, DMC africana que também administra os Porini Camps, no Quênia, e as propriedades Nimali, na Tanzânia. Suas propriedades têm todas profunda ligação com as comunidades locais em que cada uma está inserida e tudo que afeta um camp afeta também uma comunidade inteirinha.
Nos grandes centros urbanos é preciso abrir os olhos para as necessidades sociais destes tempos também. Muitos hotéis do grupo Shangri-la, por exemplo, estão utilizando suas cozinhas para produzir refeições para médicos na luta contra a covid-19 e também para famílias vulneráveis das comunidades em seus entornos. No Canadá, o hotel boutique independente Windsor Arms, em Toronto, está na mesma toada, produzindo pelo menos 250 refeições diárias para hospitais e comunidades da região.
“É o turismo que contribui para o desenvolvimento social e preservação cultural da comunidade receptora. O turismo solidário contribui para geração e distribuição de renda local e valoriza o modo de viver dos anfitriões”, diz Simone Scorsato, da BLTA (Brazilian Luxury Travel Association), associação que reúne diversas propriedades independentes do mercado de luxo no Brasil. A sustentabilidade do turismo sempre esteve na pauta da associação, desde sua fundação. Mas nestes tempos de pandemia, a BLTA vem buscando incentivar seus associados, bem como o trade em geral, a ter uma atitude mais solidária nesse momento de paralisia do turismo. “O Turismo Solidário é um conceito transversal a qualquer segmento de turismo”, insiste Simone.
Diversos associados da BLTA saíram na dianteira para cuidar de suas comunidades. A primeira iniciativa veio dos hotéis de Trancoso, ainda no mês de março, que criaram a campanha AT – Alimenta Trancoso, junto com a comunidade local. Produzem e entregam marmitas, arrecadam dinheiro para compra de cestas básicas e vendem fotos estilo fine art de diversos fotográfos. A campanha da hotelaria solidária vai tão bem que a meta inicial de 500 cestas básicas ao mês já foi batida e chegaram a 900 cestas.
O Unique , em São Paulo, doou cerca de uma tonelada e meia de insumos a diversas associações, como Fraternidade Irmã Clara, Pastoral do Quilo e Lar Jesus Maria José. A Pousada Literária, em Paraty, doou respirador para o hospital municipal e produtos orgânicos, itens secos e enxovais para confecção de máscaras para a Prefeitura e a Igreja matriz redistribuírem às comunidades locais. A Casa dos Arandis, em Maraú, toda semana confecciona cerca de 25 kits de máscaras e repelentes caseiros (a região enfrenta também novo surto de dengue) juntamente com cestas básicas para famílias de Algodoes, Saquaira e Saleiro (bairros vizinhos). O Hotel Emiliano, também em São Paulo, doou mais de uma tonelada e meia de alimentos para o Gastromotiva, a renda arrecadada com seus novos pijamas para a associação Meninos de Luz e enxovais para os hospitais de campanha da região.
O Txai Resorts se uniu ao fotógrafo Tuca Reinés para um campanha de doações para assistir com cestas básicas as comunidades do seu entorno durante os tempos de quarentena. Todo o valor arrecadado com as doações serão integralmente utilizados para compra de cestas básicas para as famílias assistidas e as doações mais polpudas, a partir de 600 reais, levam como agradecimento uma fotografia assinada de Tuca Reinés. Além do desenvolvimento comunitário, o resort é também responsável por projetos ambientais como Txaitaruga e Txai Pássaros.
Os hotéis do grupo Belmond no Brasil também entendem que é hora da hotelaria ser solidária e entraram com tudo nesta bela onda. O Belmond Copacabana Palace doou lençóis e toalhas do hotel para a associação Solar Meninos da Luz, além de antigos uniformes (sem logotipos) e 80 pares de sapatos. O Belmond Hotel das Cataratas confeccionou e doou mais de 400 máscaras caseiras (nas últimas duas semanas) aos membros mais vulneráveis da comunidade mais próxima ao hotel.
A Expedição Katerre e o Mirante do Gavião Lodge, na Amazônia brasileira, criaram um e-commerce para a Fundação Almerinda Malaquias – que também promove trabalhos de capacitação e geração de renda para mais de 40 famílias. Agora sua arte sustentável em marchetaria (com reaproveitamento de sobras de madeiras amazônicas) dos artesãos da Amazônia chegará ao país todo através deste site aqui.
O grupo Fasano, que conta com hotéis em diferentes destinos no Brasil, também apostou forte na solidariedade nestes tempos de pandemia e se uniu a parceiros para a concretização de distintas iniciativas no projeto Fasano do Bem. A primeira ação implementada foi a doação de todos os insumos e alimentos perecíveis dos restaurantes do grupo em São Paulo. Em uma ação conjunta entre os chefs Luca Gozzani, do Fasano, e Rodrigo Oliveira, do Mocotó, os insumos foram doados e refeições/marmitas foram preparadas para doação a vulneráveis. Outra parte dos alimentos foi doada para a ONG Santa Fé.
Além disso, o grupo faz também captação de recursos por meio das plataformas de delivery dos seus restaurantes, com valores integralmente repassados para as organizações UniãoSP e União Rio. E também se uniu a outros parceiros para promover uma campanha para preparação e doação de 1 mil marmitas semanais para a população em situação de rua no Centro de São Paulo.
Fora do Brasil, mas com serviços especializados majoritariamente voltados para brasileiros, o site de aluguel de imóveis em Paris e outras capitais europeias À la Parisienne também entrou no movimento solidário e, a exemplo de diversos hotéis no planeta, colocou os seus excelentes imóveis à serviço de profissionais da saúde durante a pandemia, sem custos.
Solidariedade na dura crise africana também
Diversos destinos africanos estão sofrendo agora com uma consequência inesperada das medidas de quarentena: o aumento da caça e do contrabando em diversos países. E muitos lugares a ausência de turistas devido ao lockdown e ao fechamento das fronteiras está fazendo com que os casos de caça e contrabando de marfim e chifres de rinocerontes aumente consideravelmente, inclusive em destinos que há nos últimos anos tinham isso sob controle. Dá pra ler mais sobre isso nessa minha matéria para o UOL.
Além de diversas ONGs em franca atividade em diferentes destinos para tentar conter caçadores e contrabandistas, duas redes de safari camps no continente africano entraram com tudo nessa luta: a Great Plains Conservation (com propriedades no Quênia, na Botsuana e no Zimbabue) e a Gamewatchers Safaris (com propriedades no Quênia e na Tanzânia). E estão dando incríveis exemplos. Vale lembrar que, no caso das reservas de vida selvagem, em muitos casos o turismo responde por 100% das arrecadações anuais para administração de toda a reserva (e não apenas da estrutura hoteleira) – arrecadação que hoje é igual a zero. Dá para ler mais sobre o incrível trabalho que essas duas redes fazem o ano todo em termos de preservação e conservação ambiental e cultural aqui.
A Great Plains montou equipes de voluntários entre seus experientes guias (com adesão de 100% do staff) para patrulhar o tempo todo suas concessões e garantir que as terras estejam livres de caçadores. Além disso, o próprio fundador Dereck Joubert, que vive com a esposa e co-fundadora Beverly Joubert na Botsuana, tem pilotado seu próprio avião para sobrevoar as áreas constantemente e confirmar que estão realmente seguras. Investiram seus próprios recursos em compra de suprimentos médicos que foram doados às clínicas da região, além da criarem facilidades de emergências médicas na vila mais próxima de cada concessão para garantir que as comunidades estejam seguras durante a pandemia. Sua Great Plains Foundation também está semanalmente criando novas iniciativas e metas, como produzir 250 mil máscaras na comunidade enquanto eles esperam fronteiras reabrirem – e estão abertos para doações de quem possa contribuir, viajantes e empresas, para que suas iniciativas sejam viabilizadas ainda mais rapidamente.
A Gamewatchers Safaris, no Quênia, também assumiu por completo a fiscalização em suas concessões. Vale lembrar que o staff de todos os Porini Camps é 100% composto por membros das comunidades maasai dos arredores de cada propriedade. Mas agora, com a impossibilidade de turismo internacional por muito tempo e a possibilidade de tais reservas levarem até um ano para começarem a se recuperar, abre uma campanha de arrecadação para garantir que os animais continuem protegidos e as comunidades locais continuem assistidas.
E viajantes do mundo todo, como nós mesmos, também podem ajuda-los sem sair de casa. A campanha online ‘Adopt an Acre’, cujas doações começam em 35 dólares, visa se encarregar do pagamento das taxas de conservação e proteção das terras e da criação de renda para as comunidades locais nestes tempos de turismo zero. Ou seja, a garantia de que as áreas de conservação continuem operacionais e que os rangers e suas famílias continuem remunerados corretamente e trabalhando em defesa da vida selvagem. Doações mais polpudas (os detalhes estão no site da campanha) poderão ser usadas também como crédito de igual valor para quem decidir se hospedar num dos safari camps do grupo Porini Camps em 2021 ou 2022.
Por aqui, estamos na torcida para que mais propriedades se engajem de fato, e o mais rápido possível, na proteção e sobrevivência de suas comunidades. Eu, pessoalmente, sempre valorizei propriedades praticantes do turismo responsável e verdadeiramente engajadas com suas comunidades e destinos. Afinal, se esperamos que o turista seja cada vez mais consciente e que o turismo no mundo todo seja realmente sustentável, é preciso, mais do que nunca, começar pelo nosso próprio quintal.
Leia neste link tudo que já foi publicado sobre hotelaria e coronavírus aqui no Hotel Inspectors.