Turismo ético é turismo espiritual

Nasci nos anos 1970 mas sou apaixonado pelos anos 1980. É claro que não sou saudosista, mas gosto da produção musical dessa década, assim como filmes, séries e as telenovelas da Globo. Não preciso dizer que revejo, quando possível toda a produção televisiva, principalmente entre os anos de 1983 e 1988. E me surpreendo como assuntos que são tabus nos dias de hoje eram tratados sem nenhum problema há 40 anos. A última década trouxe discussões essenciais que vêm transformando não apenas a forma como nos relacionamos uns com os outros mas também com a natureza.

Questões ligadas a racismo, misoginia, homofobia, intolerância religiosa são trazidas para debates francos nos obrigando a rever até mesmo as expressões que usamos em nossas conversas triviais. É preciso dizer que nada disso é fácil. E há um importante trabalho ainda a ser realizado. Em recente entrevista a empresária Luiza Trajano, emocionada, confessou que não percebia o racismo estrutural que ainda está tão presente em nosso país, ainda que a maior parte de nós, bata no peito e se considere antirracista.

No turismo não é diferente. Ainda que, por razões óbvias, saibamos lidar com diferenças culturais, estamos aprendendo a repensar serviços que sejam inclusivos e também ensinando os clientes a viajar buscando impactar o menos possível o meio ambiente.

Há uma preocupação da hotelaria global com a diversidade, a equidade, com a sustentabilidade. Uma crescente busca por experiências ecológicas é visível. E nesse cenário, observamos uma preocupação verdadeira e importante, de muitos destinos também com a dignidade dos animais. OS EUA foram pioneiros em adotar novas práticas, conscientes que a lição de casa ainda não terminou. Em seguida vieram os europeus, os asiáticos e os africanos.

Falamos aqui de viagens de fé. E sei que nem toda viagem tem um objetivo espiritual. Mas toda viagem pode ter valores espirituais a serem respeitados. E não é preciso ser São Francisco de Assis ou vegano para compreender que não há espiritualidade que resista ao desrespeito para com o ser humano ou a Natureza. O mês de abril tradicionalmente é dedicado a reflexão sobre turismo não cruel aos animais. Conversamos com a jornalista Andrea Miramontes, pioneira no país na conscientização de um turismo que recupere a dignidade dos bichos. Confira!

1. Como nasceu a iniciativa de promover a reflexão sobre o turismo e dignidade animal?

Trabalho com proteção animal há mais de 20 anos. Sempre levei o assunto para o jornalismo. Encaro com grande responsabilidade, como jornalista e influencer, incentivar o turismo que não cometa crueldade e abuso com animais para satisfazer as pessoas e gerar lucro. Faço isso em todos os veículos em que passei. No último grande portal de notícias em que trabalhei, eu criei a editoria de turismo em 2011, que já nasceu com essa regra. Enquanto estive lá, nenhum passeio com animais em cativeiro e que cometa crueldade foi publicado debaixo do meu guarda-chuva de editora. De 10 anos para cá, meu projeto @ladobviagem, nas redes sociais e site, já nasceu com essa missão. Foi o primeiro site de viagens dedicado a combater o abuso animal de forma explícita. Há tanta coisa linda para curtir no mundo e não precisamos usar o sofrimento de animais para nos divertir. 

2. Que tipos de cuidado o turista precisa observar? Muitas vezes ele nem se dá conta de que está colaborando para maltratar animais. 

Além de não prestigiar zoológicos, shows com animais, que deveriam estar livres com seus comportamentos naturais, e evitar selfies com animais selvagens, é preciso ficar atento a mais algumas regras. Qualquer passeio que tenha animal em cativeiro e contato de turista com animais selvagens, como dar mamadeira a leãozinho, banho em elefante, tirar foto com bicho-preguiça ou arara, montaria em qualquer animal, tem cativeiro e crueldade. Não faça. Desconfie de falsos santuários. O santuário de verdade não faz do lugar um zoológico, não permite contato das pessoas com os animais e tenta, de toda forma, reabilitar o animal para devolver à natureza. Essa é a missão.

3. Que ações destinos têm tomado e que podem inspirar?

Evitam divulgar como atração do destino os lugares que tenham animais em cativeiro. Devem destinar parte do dinheiro do turismo à preservação ambiental de fauna e flora. Hotéis não devem ter animais em cativeiro como atrativo. É preciso incentivar o turismo para observação de animais livres, sem contato com as pessoas, no habitat natural deles, conduzido por pessoas treinadas para isso. E, claro, nesse tipo de turismo, o animal aparece se quiser. O turista deve estar consciente disso. Um excelente exemplo no Brasil é um turismo no Pantanal para ver onças pintadas livres. Em vez de lucrarem com a matança de onças, é melhor protegê-las e tê-las livres, para observação de turistas. Os visitantes são levados por profissionais extremamente qualificados, inclusive, com controle do tempo máximo do passeio, silêncio e comportamento adequado do turista, para a mínima intervenção naquele ambiente, que um passeio desses exige. 

4. Há outras iniciativas parecidas com a sua no Brasil e no mundo?

Sinceramente, fui a pioneira a começar um site de turismo que se dedica a isso, como uma das principais responsabilidades. Muitos outros sites, mas estes dedicados ao veganismo e de ONGS internacionais, muito competentes, já combatiam crueldades e continuam um trabalho importante para acabar com o turismo com animais em cativeiro, selfies e shows. Hoje, alguns grandes veículos já abandonaram o incentivo de turismo que comete crueldade animal. Mas ainda temos um caminho árduo, especialmente nestes tempos de alguns influencers desmiolados e cafonas, que ainda publicam beijos em golfinhos, macacos como pet e montaria em burros, cavalos, camelos e elefantes escravos, como se fosse algo divertido.

o turista religioso pode ser jovem e esportista também

Falsos deuses, mitos ou preconceitos?

Mitos são essenciais quando se fala de religião. Mas passam longe quando o assunto é decisão em negócios e estudos de mercado. Falar de turismo espiritual exige observação, pesquisas e muita reflexão.  Esqueça a imagem de freiras, padres e casais idosos em viagens de ônibus  visitando igrejas do interior para pagar promessas como retrato único deste segmento. Ele é múltiplo e complexo, como a fé dos brasileiros, mas, diga-se de passagem, altamente lucrativo.

Há que se entender primeiramente que turismo religioso pode se compor com outras modalidades, como gastronômico, cultural e até esportivo – de caminhadas, cavalgadas até escaladas. Não é uma atividade única, isolada. Eis o primeiro mito: tal modalidade assume ora a posição de protagonista, ora a posição de coadjuvante.

Quantos turistas, não religiosos, visitam catedrais góticas e igrejas barrocas na Europa, ou mesmo em Minas Gerais e Bahia? Quantos brasileiros na Ásia não foram conhecer templos budistas ou hindus mesmo nunca tendo ouvido falar de Krishna ou sutra? Sem deixar de mencionar as visitas a mesquitas no Oriente Médio, Norte da África e Espanha.

O advogado do diabo dirá: mas não houve motivação religiosa, apenas cultural. Mas ainda assim tais espaços não perderam seu status de local sagrado onde ritos acontecem. Nessas ocasiões o turismo religioso é chamado de coadjuvante mesmo movimentando, de forma significativa, a economia local. No entanto, que mais nos interessa, é quando a religião assume o protagonismo em uma viagem.  E nesse sentido, é preciso quebrar um segundo mito: tais viagens nem sempre são feitas por fiéis praticantes.

O crescimento dos “sem religião”

Muitos fundamentalistas religiosos não gostam de mencionar, mas na Europa, na América do Norte e mesmo no Brasil, pesquisas indicam que percentualmente, o número de pessoas “sem religião” é o que mais cresce. Ainda que movimentos pentecostais e neopentecostais ocupem mídias e mesmo posições importantes políticas, o crescimento não tem sido tão vigoroso como foi nos anos 90 e início dos anos 2000. Já aqueles que não se identificam com uma fé específica não para de crescer. É o que chamamos de novo movimento de secularização. 

Lembro: não estamos falando de crescimento absoluto, mas aumento relativo, percentual. E pessoas que se dizem “sem religião” não são necessariamente ateístas. Essa última categoria também está presente nesta segmentação mas não é a mais importante.

Pessoas sem religião podem ser aquelas que, em um movimento influenciado por aquele da Nova Era criam suas práticas religiosas de forma muito pessoal, não assumindo rótulos e compromissos com uma tradição específica. É a tal da espiritualidade independente.

São indivíduos que nasceram em um lar católico ou protestante, por exemplo, mas tomam passe no centro espírita vez ou outra, estudam Cabala, praticam Yoga, usam branco no réveillon porque traz boas energias. Podem ser os que não dispensam um tarô, como curiosidade -claro, ou ainda que correm para um terreiro quando a coisa aperta.

Há também os que buscam o self, o tal autoconhecimento. E para isso procuram rituais xamânicos, peregrinações a Santiago de Compostela ou meditação na Ásia.  Para eles, a viagem espiritual é a tal da experiência transformadora sem passar por nenhum processo de iniciação. Não querem ter vínculos religiosos. Querem apenas uma vivência transcendental. Desconectada da rotina. Usam expressões como “recarregar baterias”, “silêncio interior”, pagando caro por tal jornada e assim, destruindo o terceiro mito: a de que turismo religioso tem ticket médio baixo.

Turismo de experiência: muito além do vinho

Há um equívoco ao se associar o turismo de experiência apenas com enogastronomia ou esportes. Ou ainda crer que grupos religiosos são católicos para Roma ou evangélicos para Israel. A maioria desses turistas hoje deseja um processo de desintoxicação emocional, física e mental .

É claro que trabalhar com tal mercado exige conhecimento. Não dá para uma pousada no interior de São Paulo, como ouvi recentemente, receber certos grupos de yoga e servir presunto no café da manhã e carne no jantar. Quando eu era gerente de marketing na marca Sofitel criei amenities para muçulmanos, bússolas nos quartos, tapete individual para orações e o Alcorão no lugar da Bíblia.  Fidelizamos muitos clientes corporativos. Mas não é disso que estamos falando: clientes fiéis?