Fé em números

Se santo de casa não faz milagre, é melhor buscar em outros cantos as respostas que um fiel tanto precisa. Senão vejamos. Por conta da pandemia, a prefeitura de Salvador impediu o cortejo para Iemanjá no famoso 2 de fevereiro na praia do Rio Vermelho. Em um comunicado oficial, o prefeito explicou que o Orixá que rege todos os mares, inclusive e sobretudo na África, aceita suas flores em qualquer litoral do mundo e em qualquer dia do ano. Ainda assim, milhões de pessoas foram para a capital baiana agradecer e pedir na primeira semana de 2022. Do mesmo modo, Jesus disse em Seu Evangelho que onde houvesse duas ou mais pessoas em seu nome, lá Ele estaria. Mas para bilhões de cristãos, em certos lugares do Globo, o Cristo se faz mais presente. Seja em Roma ou em Jerusalém.


Ao contrário do que certas correntes neopentecostais pregam, católicos sabem que as imagens de gesso não são os santos em si. São apenas representações. Mas mesmo com essa consciência, muita gente se desloca até Aparecida do Norte para receber bençãos da padroeira do Brasil, cuja imagem está presente na imensa maioria dos lares brasileiros. E tal comportamento não é uma expressão específica de nosso povo  ou um fenômeno contemporâneo. Existe há séculos, em diferentes culturas. Jovens judeus sentem-se obrigados a uma experiência em Israel nos kibutz. Muçulmanos precisam visitar Meca ao menos uma vez na vida. Budistas acreditam que encontrarão uma experiência transcendental distinta na Ásia. Ciganos fortalecem seus vínculos e mantêm a sua identidade visitando em maio, Saintes Maries de la Mer. Devotos das religiões de matriz africana sentem-se carregados de axé quando visitam Nigéria, Benin ou Salvador.


E a capital baiana nesse sentido é um caso a ser estudado. Dados recentes da Bahiatursa indicam que 5 milhões de pessoas visitam a cidade por conta de motivos religiosos. Sejam as festas católicas, como a de Bom Jesus dos Navegantes, as festas do candomblé ou até mesmo para conhecer o mais famoso médium kardecista ainda vivo, Divaldo Pereira Franco.


Estatísticas baianas não são frutos de milagre apenas do Senhor do Bonfim. Acontecem em todo o mundo. Os dois santuários franceses mais famosos , Monte São Michel e Basílica de Lourdes, recebem anualmente mais turistas que monumentos parisienses emblemáticos, como o Museu do Louvre. Quando a India resolveu se posicionar no mercado do turismo com a campanha Incredible !ndia, em 2002, e focou, no ano seguinte em viagens espirituais, viu o número de turistas crescer 28,8%, sendo, inclusive, premiada pela Condé Nast Traveller por tal iniciativa.


Assim como Portugal, Israel , cada vez mais bem posicionado entre descolados, investindo nas viagens de alto padrão, enoturismo e segmento LGBTQI+, tem forte receita graças às viagens religiosas. O caminho de Santiago de Compostela é o que sustenta centenas de negócios, assim como os hotéis de Águas de Lindoia, destino preferido dos retiros espirituais e seminários de muitas igrejas pentecostais.


Por conta da pandemia e suspensão de atividades na Basílica em 2020, a economia de Aparecida do Norte observou uma queda de 80% nos negócios da cidade. O Panrotas publicou em setembro último um relatório, distribuído na ILTM, e com dados da Trvl Lab que trazia informações relevantes sobre pretensões de consumo dos brasileiros em 2022. Pesquisas apontavam que 13,7% dos entrevistados consideravam fazer uma viagem religiosa neste ano. Mesmo no segmento luxo o nicho religioso se faz presente.


Engana-se aliás que o turismo religioso sempre oferece ticket médio baixo. Exemplos são as viagens ao Butão, ao Sri Lanka e até mesmo para o caminho português de Santiago de Compostela, com paradas em hotéis Relais&Châteaux e vinícolas do Douro. Seminários disputadíssimos de Nova Era em Los Angeles alcançam facilmente 5 dígitos, em dólares, of course.

Trata-se de um mercado importante que cria muitos empregos, fortalece identidades, promove trocas culturais e sustenta muitas economias. Merece respeito. Viagens de fé precisam ser sistematizadas para que tragam para os turistas segurança e conforto material, além do conforto espiritual. Em uma época em que a motivação do consumidor é experiência e a busca de viagens transformadoras unanimidade, é preciso olhar com mais atenção e profundidade para o setor, que promete e cumpre. Há, no entanto,  muitas nuances, muitas idiossincrasias uma vez que se mexe com valores sagrados e qualquer iniciativa mal planejada transforma o agente de viagens, o operador, a companhia aérea em vendilhões do templo.. Daí cada vez mais pesquisas e estudos para se compreender esse consumidor.

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Ricardo Hida

Doutorando, Mestre em Ciência da Religião e pesquisador da PUC-SP em Turismo religioso, é escritor e professor. Graduado pela FAAP e pós-graduado pela Casper Líbero, trabalhou na Air France, Accor, Atout France e hoje dirige a Promonde, consultoria de marketing e comunicação. Escritor, está à frente também do Fórum de Turismo e espiritualidade. Foi em uma viagem de imprensa a Lourdes, na França, na época em que era diretor adjunto do escritório de Turismo francês no Brasil, que Ricardo Hida compreendeu a dimensão do Turismo religioso. Ao voltar para São Paulo, foi conhecer mais sobre esse universo que movimenta milhões de viajantes a cada ano em todo o mundo, há muitos séculos. Romarias, peregrinações, retiros. Não importa a tradição, o segmento não para de crescer.