São Thomé das Letras: só vendo pra crer

Até o século XVIII, a área hoje conhecida por São Thomé das Letras abrigava aldeias indígenas que foram expulsas por bandeirantes. O município com pouco mais de 7 mil habitantes localiza-se no Sul de Minas Gerais, a 346 km de Belo Horizonte e 347 km da cidade de São Paulo e tornou-se referência internacional em turismo esotérico.

A atividade principal da cidade é extrativista, com imponente pedreira. A pouco mais de 1,4 mil metros acima do nível do mar, São Thomé é uma típica cidade serrana edificada sobre um largo depósito mineral de quartzito.

Para quem não sabe, utiliza-se esse mineral ao redor das piscinas. E são as pedras , fartamente utilizadas nas construções da cidade, que fortalecem a imagem de um destino esotérico. Igrejas, ruas, casas e até uma pirâmide foram construídas com esse material. Contudo o turismo têm uma importância irrefutável para a economia.

Embora seu centro histórico seja tombado como Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, não é a história que torna a cidade tão famosa, mas sua aura mística que atrai até 4 mil turistas em um final de semana. Diz a lenda que o fazendeiro João Francisco Junqueira- cujo escravo João Antão recebera uma carta de alforria do santo católico – é o fundador do município . Justifica-se a expressão “das letras”, por vestígios rupestres vermelhos encontrados na gruta onde o escravo liberto se deparou com o santo.

O milagre? Storytelling

Thomé foi o discípulo de Jesus que só acreditava vendo. E só um milagre explica que a pequena cidade se tornou essa referência em turismo espiritual. Não se sabe ao certo como ela se transformou em uma referência para  esse segmento. Apesar da estória de João Antão, não houve nenhuma aparição mariana ou milagre que justificasse esse destino. Fato que ela reúne tudo o que os novaeristas adoram: pedras, grutas, cachoeiras, relatos de OVNIs e mistérios.

Há quem acredite que portais ligam São Thomé a Machu Picchu. No meio esotérico se diz que ela é um dos 7 chakras (ponto de força) do planeta. Uma possível explicação é que São Thomé se tornou um destino turístico após a década de 1960, quando artistas e comunidades alternativas lá chegaram. O artesanato, com forte influência hippie, está presente em todo o comércio local.  De forma análoga, Embu das Artes, em São Paulo, também recebeu esse público nos anos 1970 e 1980 e ainda assim, não se tornou o que é sua versão mineira.

Pousadas recebem praticamente em todos os finais de semana grupos de ufólogos, bruxos, esotéricos para vivências e rituais. Há estadas mais longas e mesmo wiccanos celebram lá seus casamentos. É comum ver pessoas vestidas como figurantes do Senhor dos Anéis, em determinados períodos do ano. Mas a filosofia élfica para por aí. Nada de lutas. Uma coisa é certa: lá as pessoas levam ao pé da letra a expressão paz e amor. Os índices de violência são baixos. As pessoas buscam experiências transformadoras. Querem sair da rotina, do estresse. Embora os jovens sejam maior parte dos turistas, a vida noturna é bem distinta das grandes capitais. Além dos bares, sempre com nomes alternativos, à noite, grupos se reúnem para observar possíveis OVNIs. Detalhe: Varginha, famosa por seu ET, fica a 50 km do município.

Estrela do turismo mineiro

A saber, no ano passado, o Observatório de Turismo de Minas Gerais publicou em seu relatório que o destino mineiro mais procurado no pós-pandemia foi São Thomé das Letras. Em maio de 2021 a cidade havia recuperado o movimento de 2019.

É claro que nem todo mundo que vai a cidade acredita em extraterrestres, elementais da natureza e bruxaria. Muita gente busca o turismo ecológico e o turismo de aventura, também muito fortes na região. As cachoeiras são belíssimas e muito instagramáveis. Poucos são os turistas que não acham divertidas e curiosas as narrativas espirituais. E é aí que mora a magia do posicionamento do destino. Tudo faz parte da experiência da cidade, como almoçar no restaurante O Alquimista. Além disso, não há como fugir de cristais, camisetas com temáticas orientais e incensos para levar como recordação da viagem.

A expressão “eu não creio em bruxas, mas que elas existem, elas existem” faz todo sentido nesta parte do sul de Minas.

turismo religioso salva

Na última semana o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) autorizou a montagem de uma estátua de Nossa Senhora Aparecida, feita pelo artista plástico Gilmar Pinna, em Aparecida, no interior do estado. Desde 2019 a obra, doada à cidade, por conta dos 300 anos do primeiro milagre atribuído à santa,  estava embargada após ação da ATEA- Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos. A entidade alegava que não poderia haver nenhum investimento público, inclusive para a montagem e manutenção da imagem, uma vez que o Brasil é um Estado laico e arrecadação de impostos, pagos por não católicos, não poderia beneficiar nenhuma religião.

Tal imbróglio não é inédito. No passado, para a construção do Cristo Redentor, entidades não católicas diversas, inclusive protestantes, também se colocaram contra a construção da estátua no Rio de Janeiro. Tal questionamento se deu também na construção da estátua de Padre Cícero, no Ceará e na imagem de Santa Rita de Cássia, no Rio Grande do Norte.

A forma encontrada para resolver a contenda jurídica foi baseada no turismo religioso. O desembargador Ponte Neto entendeu que a obra contribuiria para a promoção de Aparecida como destino turístico, atraindo mais investimentos, criando empregos e “melhorando a qualidade de vida dos moradores”. Para completar o argumento, atribuiu-se à estátua um caráter artístico. Tal alegação de arte é sempre lembrada também quando se fala na manutenção das imagens de Orixás no dique de Salvador.

O prefeito de Aparecida explica que a cidade, reconhecida internacionalmente pela comunidade católica apostólica romana, como uma capital mariana, atrai cerca de 13 milhões de peregrinos por ano. No ano de 2020 quando as atividades religiosas no Santuário foram suspensas, a arrecadação caiu cerca de 80%.

Diferentemente do perdão das dívidas de igrejas que não encontra nenhuma justificativa econômica, certas construções e benfeitorias (em patrimônio histórico religioso) se colocam como investimento turístico. Assim foi com a sinalização dos terreiros tradicionais de candomblé em Salvador, nos templos de Cotia e do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo. Assim se dá em muitas cidades pelo mundo: de Jerusalém a Ouro Preto. É inegável a movimentação que tais empreendimentos promovem nas comunidades. De bares e restaurantes até lojas de souvenires.

A ATEA, inclusive, neste momento da decisão judicial, não sabe se pretende entrar com recurso. Especialistas afirmam que os números econômicos apresentados pela defesa e a construção da peça jurídica, em cima do turismo religioso, tornam a causa praticamente perdida.

Não há nenhuma dúvida sobre a importância do turismo como gerador de empregos diretos e indiretos, sobretudo para mão de obra menos qualificada. Tampouco se duvida de seu potencial econômico, respondendo entre 7% a 84% do PIB de certas comunidades. O turismo serve até mesmo de argumento para quiproquó jurídico. Por que segue então recebendo tão pouca atenção das autoridades? Eis aí um mistério, nada divino.

o turista religioso pode ser jovem e esportista também

Falsos deuses, mitos ou preconceitos?

Mitos são essenciais quando se fala de religião. Mas passam longe quando o assunto é decisão em negócios e estudos de mercado. Falar de turismo espiritual exige observação, pesquisas e muita reflexão.  Esqueça a imagem de freiras, padres e casais idosos em viagens de ônibus  visitando igrejas do interior para pagar promessas como retrato único deste segmento. Ele é múltiplo e complexo, como a fé dos brasileiros, mas, diga-se de passagem, altamente lucrativo.

Há que se entender primeiramente que turismo religioso pode se compor com outras modalidades, como gastronômico, cultural e até esportivo – de caminhadas, cavalgadas até escaladas. Não é uma atividade única, isolada. Eis o primeiro mito: tal modalidade assume ora a posição de protagonista, ora a posição de coadjuvante.

Quantos turistas, não religiosos, visitam catedrais góticas e igrejas barrocas na Europa, ou mesmo em Minas Gerais e Bahia? Quantos brasileiros na Ásia não foram conhecer templos budistas ou hindus mesmo nunca tendo ouvido falar de Krishna ou sutra? Sem deixar de mencionar as visitas a mesquitas no Oriente Médio, Norte da África e Espanha.

O advogado do diabo dirá: mas não houve motivação religiosa, apenas cultural. Mas ainda assim tais espaços não perderam seu status de local sagrado onde ritos acontecem. Nessas ocasiões o turismo religioso é chamado de coadjuvante mesmo movimentando, de forma significativa, a economia local. No entanto, que mais nos interessa, é quando a religião assume o protagonismo em uma viagem.  E nesse sentido, é preciso quebrar um segundo mito: tais viagens nem sempre são feitas por fiéis praticantes.

O crescimento dos “sem religião”

Muitos fundamentalistas religiosos não gostam de mencionar, mas na Europa, na América do Norte e mesmo no Brasil, pesquisas indicam que percentualmente, o número de pessoas “sem religião” é o que mais cresce. Ainda que movimentos pentecostais e neopentecostais ocupem mídias e mesmo posições importantes políticas, o crescimento não tem sido tão vigoroso como foi nos anos 90 e início dos anos 2000. Já aqueles que não se identificam com uma fé específica não para de crescer. É o que chamamos de novo movimento de secularização. 

Lembro: não estamos falando de crescimento absoluto, mas aumento relativo, percentual. E pessoas que se dizem “sem religião” não são necessariamente ateístas. Essa última categoria também está presente nesta segmentação mas não é a mais importante.

Pessoas sem religião podem ser aquelas que, em um movimento influenciado por aquele da Nova Era criam suas práticas religiosas de forma muito pessoal, não assumindo rótulos e compromissos com uma tradição específica. É a tal da espiritualidade independente.

São indivíduos que nasceram em um lar católico ou protestante, por exemplo, mas tomam passe no centro espírita vez ou outra, estudam Cabala, praticam Yoga, usam branco no réveillon porque traz boas energias. Podem ser os que não dispensam um tarô, como curiosidade -claro, ou ainda que correm para um terreiro quando a coisa aperta.

Há também os que buscam o self, o tal autoconhecimento. E para isso procuram rituais xamânicos, peregrinações a Santiago de Compostela ou meditação na Ásia.  Para eles, a viagem espiritual é a tal da experiência transformadora sem passar por nenhum processo de iniciação. Não querem ter vínculos religiosos. Querem apenas uma vivência transcendental. Desconectada da rotina. Usam expressões como “recarregar baterias”, “silêncio interior”, pagando caro por tal jornada e assim, destruindo o terceiro mito: a de que turismo religioso tem ticket médio baixo.

Turismo de experiência: muito além do vinho

Há um equívoco ao se associar o turismo de experiência apenas com enogastronomia ou esportes. Ou ainda crer que grupos religiosos são católicos para Roma ou evangélicos para Israel. A maioria desses turistas hoje deseja um processo de desintoxicação emocional, física e mental .

É claro que trabalhar com tal mercado exige conhecimento. Não dá para uma pousada no interior de São Paulo, como ouvi recentemente, receber certos grupos de yoga e servir presunto no café da manhã e carne no jantar. Quando eu era gerente de marketing na marca Sofitel criei amenities para muçulmanos, bússolas nos quartos, tapete individual para orações e o Alcorão no lugar da Bíblia.  Fidelizamos muitos clientes corporativos. Mas não é disso que estamos falando: clientes fiéis?

Fé em números

Se santo de casa não faz milagre, é melhor buscar em outros cantos as respostas que um fiel tanto precisa. Senão vejamos. Por conta da pandemia, a prefeitura de Salvador impediu o cortejo para Iemanjá no famoso 2 de fevereiro na praia do Rio Vermelho. Em um comunicado oficial, o prefeito explicou que o Orixá que rege todos os mares, inclusive e sobretudo na África, aceita suas flores em qualquer litoral do mundo e em qualquer dia do ano. Ainda assim, milhões de pessoas foram para a capital baiana agradecer e pedir na primeira semana de 2022. Do mesmo modo, Jesus disse em Seu Evangelho que onde houvesse duas ou mais pessoas em seu nome, lá Ele estaria. Mas para bilhões de cristãos, em certos lugares do Globo, o Cristo se faz mais presente. Seja em Roma ou em Jerusalém.


Ao contrário do que certas correntes neopentecostais pregam, católicos sabem que as imagens de gesso não são os santos em si. São apenas representações. Mas mesmo com essa consciência, muita gente se desloca até Aparecida do Norte para receber bençãos da padroeira do Brasil, cuja imagem está presente na imensa maioria dos lares brasileiros. E tal comportamento não é uma expressão específica de nosso povo  ou um fenômeno contemporâneo. Existe há séculos, em diferentes culturas. Jovens judeus sentem-se obrigados a uma experiência em Israel nos kibutz. Muçulmanos precisam visitar Meca ao menos uma vez na vida. Budistas acreditam que encontrarão uma experiência transcendental distinta na Ásia. Ciganos fortalecem seus vínculos e mantêm a sua identidade visitando em maio, Saintes Maries de la Mer. Devotos das religiões de matriz africana sentem-se carregados de axé quando visitam Nigéria, Benin ou Salvador.


E a capital baiana nesse sentido é um caso a ser estudado. Dados recentes da Bahiatursa indicam que 5 milhões de pessoas visitam a cidade por conta de motivos religiosos. Sejam as festas católicas, como a de Bom Jesus dos Navegantes, as festas do candomblé ou até mesmo para conhecer o mais famoso médium kardecista ainda vivo, Divaldo Pereira Franco.


Estatísticas baianas não são frutos de milagre apenas do Senhor do Bonfim. Acontecem em todo o mundo. Os dois santuários franceses mais famosos , Monte São Michel e Basílica de Lourdes, recebem anualmente mais turistas que monumentos parisienses emblemáticos, como o Museu do Louvre. Quando a India resolveu se posicionar no mercado do turismo com a campanha Incredible !ndia, em 2002, e focou, no ano seguinte em viagens espirituais, viu o número de turistas crescer 28,8%, sendo, inclusive, premiada pela Condé Nast Traveller por tal iniciativa.


Assim como Portugal, Israel , cada vez mais bem posicionado entre descolados, investindo nas viagens de alto padrão, enoturismo e segmento LGBTQI+, tem forte receita graças às viagens religiosas. O caminho de Santiago de Compostela é o que sustenta centenas de negócios, assim como os hotéis de Águas de Lindoia, destino preferido dos retiros espirituais e seminários de muitas igrejas pentecostais.


Por conta da pandemia e suspensão de atividades na Basílica em 2020, a economia de Aparecida do Norte observou uma queda de 80% nos negócios da cidade. O Panrotas publicou em setembro último um relatório, distribuído na ILTM, e com dados da Trvl Lab que trazia informações relevantes sobre pretensões de consumo dos brasileiros em 2022. Pesquisas apontavam que 13,7% dos entrevistados consideravam fazer uma viagem religiosa neste ano. Mesmo no segmento luxo o nicho religioso se faz presente.


Engana-se aliás que o turismo religioso sempre oferece ticket médio baixo. Exemplos são as viagens ao Butão, ao Sri Lanka e até mesmo para o caminho português de Santiago de Compostela, com paradas em hotéis Relais&Châteaux e vinícolas do Douro. Seminários disputadíssimos de Nova Era em Los Angeles alcançam facilmente 5 dígitos, em dólares, of course.

Trata-se de um mercado importante que cria muitos empregos, fortalece identidades, promove trocas culturais e sustenta muitas economias. Merece respeito. Viagens de fé precisam ser sistematizadas para que tragam para os turistas segurança e conforto material, além do conforto espiritual. Em uma época em que a motivação do consumidor é experiência e a busca de viagens transformadoras unanimidade, é preciso olhar com mais atenção e profundidade para o setor, que promete e cumpre. Há, no entanto,  muitas nuances, muitas idiossincrasias uma vez que se mexe com valores sagrados e qualquer iniciativa mal planejada transforma o agente de viagens, o operador, a companhia aérea em vendilhões do templo.. Daí cada vez mais pesquisas e estudos para se compreender esse consumidor.